O Encontro



Rosa era uma mulher de hábitos simples e rotineiros: a quietude da rede ao cair da chuva, um bom livro e a profundidade macia de sonhos tácitos e leves, um bom vinho para lustrar o verniz da alma... Assim, era de amores pacíficos, destes que sobrevoavam terras líquidas e ilimitadas. Gostava disso. Um filme, um bom filme que tangia macios desejos, quase divinos, que transpassavam latitudes para realizarem-se em paraísos possíveis. E a música, a boa música, sugada de violinos e solos de pianos, que trazia o éter para a terra, ali, ao seu redor, em explosões constantes de pequenas paixões.

Casa, trabalho; trabalho, casa. Pelo trajeto ia a conversar com Deus, que silenciosamente descrevia os motivos do mar, a força das montanhas, os segredos das faces humanas por onde passeavam seus olhos maravilhados, sempre, com a diferença entre as mesmas coisas. Então descia do ônibus e caminhava para o escritório, indiferente às vitrines, aos bares, aos shoppings, onde se juntavam homens e às vezes mulheres.

Naquele dia, a porta do escritório foi aberta com mansidão. Metade de um homem espiou ao largo da sala. Ela levantou o rosto e deu de olhos com os olhos dele:

— Bom dia!

Com o inesperado pendurado nas sobrancelhas arqueadas atrás dos óculos, ela respondeu:

— Bom dia!

— Dr. Mendes. Procuro pelo Dr. Mendes, observou o homem.

— Final do corredor, ela apontou com a caneta.

Ele entrou de cinza e preto, largando no ar o perfume de limão. Ela não precisou de qualquer investigação. O cheiro dominou todo o ambiente, em segundos, e com ele o milagre quase visível de pêlos recentemente aparados. Deu de ombros aos comentários da amiga ao lado.

Depois desse dia, ele passou a sentar-se do outro lado da sala, quase de frente para ela. Foi lacônica nas apresentações. Nenhuma palavra. Um meio sorriso e um gesto leve e breve com a cabeça. Não lhe cabia conhecer detalhes: o que ele faria, porque faria, de que forma faria. Uma hora qualquer, a biografia do homem viria à tona com todos, permitidos ou não, pormenores. Ou aquele não seria o escritório onde trabalhava, há vinte anos.

Mas, aconteceu que a partir daí, todos os dias, ao abrir a porta do escritório, entrava naquele cheiro de limão e barba feita. Sem dar muita importância ao fato, seguia seu costumado itinerário de trabalho. Talvez fosse meio enjoativo, mas suportável. E depois, às vezes ele aparecia no meio de sua conversa com Deus, feito lembrete de compromisso do qual não se pode esquecer. E depois, ainda, passou a segui-la pelas ruas até que, inesperadamente, no meio de um segundo, sem precisão de hora e dia, assustada, intuiu que percebia aquele perfume, diária e continuadamente, com mais apuro. O cheiro borbulhava, espumava, escorria cobrindo e descobrindo seus sentidos. Às vezes, já nem cheiro: cor, ritmo. E, também, que o limão guardava em si outros cheiros que lhe batiam amiúde: frescor, vigor; cheiro de fim de noite, de café com leite. Cheiro de chuva lá fora e chocolate quente no sofá da sala. Ia longe, levada por aquele perfume.

Marcio. O nome dele era Marcio. Cabelos pretos, pele morena, altura pra mais de metro e setenta. Mas que importância tinha isso? Curioso! Era como se homem e cheiro não se pertencessem. Era como se a fragrância afastasse o homem do homem. O homem, sem identidade e limites; do homem matéria sólida, legítima, autêntica. Pouco se falavam. Duas ou três frases, no máximo, ao longo do dia, que cumpria seus intervalos na espontaneidade de sempre.

O tempo, sempre o tempo!, passava, indiferente aos torvelinhos que o destino aprontava. Sentia-se obrigada àquele bizarro cativeiro sem que lhe coubesse ciência do crime. O pouco chão que sobrava aos saltos altos se derretia sob o calor do corpo, quando saía para o trabalho. Chegava cada vez mais cedo e saía cada vez mais tarde. Um passo em falso e estaria irremediavelmente perdida, sem saber por que. Não conhecia qualquer produto, nenhuma simpatia, nenhuma receita caseira para remover aquele cheiro, aquela impressão então reconhecida em, e por todos os lugares. Acercou-se de cuidados e desconfianças. Não por ele. Ela, ela, era o objeto duvidoso; ela, a arapuca, a emboscada.

O dia era cada vez mais curto. Mal chegava ao escritório e tinha que partir. A birrenta sensação exigia desobediência aos seus mais íntimos vícios. As palavras desenhadas sobre o silêncio agora se escreviam violentamente num estrondoso grito de alerta. A sala, cada dia mais abafada; o espaço, a cada hora, mais reduzido. Era, agora, também, uma mulher estranha, que por inexplicável razão mantinha como amante um contumaz cheiro de limão e barba feita.

Olhava para ele, às vezes, intimidada por saber do que secretamente sabia. Ele devolvia um olhar simpático, masculinamente risonho. Nada mais. Ousava maior intimidade, mas não era capaz de adivinhar nele e dele o beijo, só os lábios; nunca o abraço, talvez apenas o calor espontâneo permitido por certa proximidade.

Rolou pela cama noite inteira, naquele dia, 30 de maio. Comeu, bebeu, de um para outro lado, andou. As estrelas pingavam longe e a lua cravada no nada se deixava existir sem esforço. Com o rosto apoiado nas mãos ela fechou os olhos ardidos tentando conter uma lágrima súbita, vinda de algum lugar impreciso. Finalmente juntara os dois: o cheiro e o dono do cheiro. Estava completamente apaixonada!

Dia seguinte, ia lá trocando idéias com Deus. Sentia-se aliviada. Mais do que isso: sentia-se feliz. Como era feliz! De bem com a vida, femininamente enfrentou a calçada e viu, pela primeira vez, o brilho das vitrines. No escritório, além do cheiro do limão e barba feita, encontrou um delicado botão de rosa sobre sua mesa.

Sorriu, fechando os olhos. "Pelo resto de minha vida!", pensou, entrando no amanhã.

Eliana Schueler
Enviado por Eliana Schueler em 07/02/2010
Código do texto: T2074317
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