Uma noite de chuva
Chove. Chove. Chove. chove. É tudo. A noite parece se repetir, continuamente: a noite de hoje é a mesma noite de três, cinco dias atrás. Fria, úmida, interrompida aqui e acolá por tênues clarões. Não mais silenciosa porque o ruído da chuva estala nas folhas do tinhorão e das folhagens, marcando ritmos itinerantes. A mesma noite com seus ritos sumários, seus intransponíveis segredos, seus frágeis encontros. A mesma noite, com seu bufo gelado a lamber os pastos, as ruas quietas, os telhados vazios.
Por que pensar numa noite assim? Por quê? Mas as perguntas ricocheteiam feito setas indomáveis em busca de alvos inexistentes. Vão e vêem atravessando janelas cerradas, explodindo em portas trancadas, repicando entre chão e teto. Por que pensar em uma noite assim, de tédio e chuva? Ninguém se atreve à rua, ninguém se arrisca ao frio.
As paredes em creme são tão monótonas quanto o tempo lá fora. Tímidas, nada inspiram, senão o que delas se espera e supõe: proteção e privacidade. Inquieta, esquadrinho paredes e teto bulindo em grãos, em detalhes esquecidos. Procuro lugares inabitados...
Espera, no canto esquerdo, ali, aquele risco... Mais acima, aquela manchinha de indefinida cor... Descasco as impressões digitais que se disfarçam sob a camada espessa de tinta e disseco o tempo como um arqueólogo aflito. Posso vê-las — ah, se posso! — carimbadas por dedos grandes, calejados, que aprumam, entre areia e cimento, tijolos sobre outros tijolos. E mãos. Mãos atarefadas e desconhecidas, que trançaram o passado e dali vigiam, com seus olhos de sempre, a vida que segue.
Posso adivinhar braços trêmulos de esforço e peso, e dorsos revestidos em camisetas lavadas de suor: negros, brancos, mulatos. Alunos e mestres, estrangeiros e velhos conhecidos. Anônimas almas... Posso supô-las — ah, se posso! — reverberando a luz do sol enquanto dançam ao ritmo compassado de pás, enxadas e prumos. Posso sentir, posso, a vida aos poucos se deitando em camadas sobrepostas, partes inteiras, umas sobre as outras, em ordenada construção de traços e passos, desconhecidos. Quem foram esses que partilham comigo essa noite?
Passado e presente se desentranham, simulam, se revelam com extravagante familiaridade. Dançam ao ritmo de minhas palpitações. Como eles, jogo. Vou e volto vibrando, perigosamente, entre realidade e fantasia. Tomo espaço e tempo alheios e, de trecho em trecho, alinhavo o tempo que se enfia pela noite, sob a chuva: Também sobre o tempo, chove. Para que pensar em uma noite assim?
Lá fora o barulho de um portão atravessa a chuva. Outras impressões digitais, outras mãos, outros ofícios. À noite, mãos e portões se cumprimentam celebrando velhos acordos. De que ocasião serão essas mãos? Do pai que busca o leito quente ou do filho que volta, tardiamente, sob a chuva que teima? Do cuidado ou do medo? Procuro o relógio. É tarde?
Um risco de saudade, eu não sei... Um levíssimo traço, uma linha, um fio de teia se insinua povoando o quarto de fantasmas. Flutuo no intervalo entre o que foi e o que é. Por urgente tempo, a sensação de ter vivido outras chuvas, outras noites, outra solidão, longínquas, mas gêmeas.
Quero andar. Minha impaciência exige movimento. Também meu ócio. Quem encontrar? Quem descobrir? Ainda assim, andar e pisar sobre passos desconhecidos, apagar caminhos já trilhados, farejar destinos originais.
Quem sabe a chuva tenha lavado a poeira e tornado à superfície trajetórias de outros pés: apressados ou cansados, ou perdidos...
Imagens, muitas. Poemas de barro, entre dois pontos e reticências, que passam pela ruazinha delicadamente estreita, sob a chuva. Tantos, com seus envelopes e pastas, com malas ou embrulhos... Alguns com entulhos, talvez. Lá e cá, sobre os paralelepípedos, incontáveis caminhos traçados! Idas e voltas... Chegadas, par-ti-das...
Um carro. Para onde irá esse, pela noite diluviana? Em busca de quê? Pensamentos furtivos engolidos por outros e mais outros. Nunca saberei seu destino. A chuva insiste. Meu último cigarro desfaz-se ao compasso de minha aflição. Droga!
Por cima do pijama quentinho, abotôo de cima a baixo o jeans e saio contrafeita. O bar com suas portas de cinza-eterno-mortiço, mais cinza na umidade da ausência. De tudo...
Até chegar, sob a luz tênue dos postes lavados, tento adivinhar em quais caminhos pisei. Sobre passos de que transeuntes? Para que destinos rumaram? E meus próprios passos, tantas vezes deixados ali, onde estariam? O que levaram, ou trouxeram, em tantas caminhadas? Aqui e lá, reflexos de luz, mas nada de registros. Mesmos hábitos, mesmos rumos, mesmas passadas. Construção interminável!
O capim, à beira das calçadas, deixa-se pentear pelas águas que correm ligeiras, meio-fio abaixo. Os muros, escurecidos pelo musgo, recente ainda, dormem nos braços da fragilidade, em profunda quietude. Nada sólido se move, senão meu corpo gelado.
Na padaria, alguns homens bebem o sono no silêncio dos copos. Mudos, bóiam entre a indiferença e a desesperança. No rosto de cada um, as marcas do tempo, já cristalizadas, denunciam uma velhice prematura, acentuada pela tristeza que cai de olhos semimortos. Sinto seus olhares roçando-me de leve para depois tornarem ao mesmo ponto de inércia, no meio de algum lugar irrevelado. Um deles, braços cruzados, busca um lugar que não há. Cochicha e ri do que não ouve e nem vê, livre de interpelações.
A atendente, pacificamente debruçada no balcão, observa a cena prendendo no canto dos lábios palavras de reprovação.
O tempo não se move. As moscas, atraídas pelo cheiro doce das garrafas, planam no ar líquido. Sinto os dedos gelados da moça que ainda àquela hora trabalha em sua invariável cor-de-rosa, ao recolher o troco e o cigarro, entregues sob o sorriso sem identidade.
Além das águas da chuva, outras águas caem torrencialmente sobre os ombros do mundo, penso.
E, chove. Chove. Chove.
Chove. Chove. Chove. chove. É tudo. A noite parece se repetir, continuamente: a noite de hoje é a mesma noite de três, cinco dias atrás. Fria, úmida, interrompida aqui e acolá por tênues clarões. Não mais silenciosa porque o ruído da chuva estala nas folhas do tinhorão e das folhagens, marcando ritmos itinerantes. A mesma noite com seus ritos sumários, seus intransponíveis segredos, seus frágeis encontros. A mesma noite, com seu bufo gelado a lamber os pastos, as ruas quietas, os telhados vazios.
Por que pensar numa noite assim? Por quê? Mas as perguntas ricocheteiam feito setas indomáveis em busca de alvos inexistentes. Vão e vêem atravessando janelas cerradas, explodindo em portas trancadas, repicando entre chão e teto. Por que pensar em uma noite assim, de tédio e chuva? Ninguém se atreve à rua, ninguém se arrisca ao frio.
As paredes em creme são tão monótonas quanto o tempo lá fora. Tímidas, nada inspiram, senão o que delas se espera e supõe: proteção e privacidade. Inquieta, esquadrinho paredes e teto bulindo em grãos, em detalhes esquecidos. Procuro lugares inabitados...
Espera, no canto esquerdo, ali, aquele risco... Mais acima, aquela manchinha de indefinida cor... Descasco as impressões digitais que se disfarçam sob a camada espessa de tinta e disseco o tempo como um arqueólogo aflito. Posso vê-las — ah, se posso! — carimbadas por dedos grandes, calejados, que aprumam, entre areia e cimento, tijolos sobre outros tijolos. E mãos. Mãos atarefadas e desconhecidas, que trançaram o passado e dali vigiam, com seus olhos de sempre, a vida que segue.
Posso adivinhar braços trêmulos de esforço e peso, e dorsos revestidos em camisetas lavadas de suor: negros, brancos, mulatos. Alunos e mestres, estrangeiros e velhos conhecidos. Anônimas almas... Posso supô-las — ah, se posso! — reverberando a luz do sol enquanto dançam ao ritmo compassado de pás, enxadas e prumos. Posso sentir, posso, a vida aos poucos se deitando em camadas sobrepostas, partes inteiras, umas sobre as outras, em ordenada construção de traços e passos, desconhecidos. Quem foram esses que partilham comigo essa noite?
Passado e presente se desentranham, simulam, se revelam com extravagante familiaridade. Dançam ao ritmo de minhas palpitações. Como eles, jogo. Vou e volto vibrando, perigosamente, entre realidade e fantasia. Tomo espaço e tempo alheios e, de trecho em trecho, alinhavo o tempo que se enfia pela noite, sob a chuva: Também sobre o tempo, chove. Para que pensar em uma noite assim?
Lá fora o barulho de um portão atravessa a chuva. Outras impressões digitais, outras mãos, outros ofícios. À noite, mãos e portões se cumprimentam celebrando velhos acordos. De que ocasião serão essas mãos? Do pai que busca o leito quente ou do filho que volta, tardiamente, sob a chuva que teima? Do cuidado ou do medo? Procuro o relógio. É tarde?
Um risco de saudade, eu não sei... Um levíssimo traço, uma linha, um fio de teia se insinua povoando o quarto de fantasmas. Flutuo no intervalo entre o que foi e o que é. Por urgente tempo, a sensação de ter vivido outras chuvas, outras noites, outra solidão, longínquas, mas gêmeas.
Quero andar. Minha impaciência exige movimento. Também meu ócio. Quem encontrar? Quem descobrir? Ainda assim, andar e pisar sobre passos desconhecidos, apagar caminhos já trilhados, farejar destinos originais.
Quem sabe a chuva tenha lavado a poeira e tornado à superfície trajetórias de outros pés: apressados ou cansados, ou perdidos...
Imagens, muitas. Poemas de barro, entre dois pontos e reticências, que passam pela ruazinha delicadamente estreita, sob a chuva. Tantos, com seus envelopes e pastas, com malas ou embrulhos... Alguns com entulhos, talvez. Lá e cá, sobre os paralelepípedos, incontáveis caminhos traçados! Idas e voltas... Chegadas, par-ti-das...
Um carro. Para onde irá esse, pela noite diluviana? Em busca de quê? Pensamentos furtivos engolidos por outros e mais outros. Nunca saberei seu destino. A chuva insiste. Meu último cigarro desfaz-se ao compasso de minha aflição. Droga!
Por cima do pijama quentinho, abotôo de cima a baixo o jeans e saio contrafeita. O bar com suas portas de cinza-eterno-mortiço, mais cinza na umidade da ausência. De tudo...
Até chegar, sob a luz tênue dos postes lavados, tento adivinhar em quais caminhos pisei. Sobre passos de que transeuntes? Para que destinos rumaram? E meus próprios passos, tantas vezes deixados ali, onde estariam? O que levaram, ou trouxeram, em tantas caminhadas? Aqui e lá, reflexos de luz, mas nada de registros. Mesmos hábitos, mesmos rumos, mesmas passadas. Construção interminável!
O capim, à beira das calçadas, deixa-se pentear pelas águas que correm ligeiras, meio-fio abaixo. Os muros, escurecidos pelo musgo, recente ainda, dormem nos braços da fragilidade, em profunda quietude. Nada sólido se move, senão meu corpo gelado.
Na padaria, alguns homens bebem o sono no silêncio dos copos. Mudos, bóiam entre a indiferença e a desesperança. No rosto de cada um, as marcas do tempo, já cristalizadas, denunciam uma velhice prematura, acentuada pela tristeza que cai de olhos semimortos. Sinto seus olhares roçando-me de leve para depois tornarem ao mesmo ponto de inércia, no meio de algum lugar irrevelado. Um deles, braços cruzados, busca um lugar que não há. Cochicha e ri do que não ouve e nem vê, livre de interpelações.
A atendente, pacificamente debruçada no balcão, observa a cena prendendo no canto dos lábios palavras de reprovação.
O tempo não se move. As moscas, atraídas pelo cheiro doce das garrafas, planam no ar líquido. Sinto os dedos gelados da moça que ainda àquela hora trabalha em sua invariável cor-de-rosa, ao recolher o troco e o cigarro, entregues sob o sorriso sem identidade.
Além das águas da chuva, outras águas caem torrencialmente sobre os ombros do mundo, penso.
E, chove. Chove. Chove.