A dúvida
Eu passei a noite inteirinha perseguindo-a, uma noite de festa dentre tantas outras em que ela reinava sobre amigos e desafetos, mas escapulia sempre que eu chegava perto.
De mesa em mesa ela sorria, atenciosa e gesticulante - pois ela é do tipo que fala com tudo que tem em si: até os dentes pequenos e alinhados ela usa (sem o saber), como um general usa a infantaria.
Eu a persegui, às vezes adivinhando sua rota e me antecedendo; quando ela chegava lá, eu lá já estava, então ela ali se deixava por pouco tempo, depois de me cumprimentar como se não me tivesse visto vinte minutos antes.
De vez em quando eu dava atenção aos meus próprios amigos, para não dar na vista; em algumas turmas eu me demorava mais, porque a conversa era boa, aí eu me lembrava da conversa dela - ótima!; eu me lembrava de toda ela ótima, e meus olhos corriam até encontrá-la; eu re-adivinhava seu objetivo e cortava caminho para causar surpresa, e - quem sabe? - no momento certo, pleitear as afinidades dos mesmos conhecidos.
A noite foi passando assim, assado... Dancei um pouco (não com ela, que é dançarina de quilate enquanto eu só imito...); bebi um bocado, até que a madrugada começou e levas e levas de pessoas doidinhas para esticar a festa saíram, para ver o sol nascer sobre as ondas, invejar as ondas lamberem a praia, desejar ser a praia e sugar o sol e o mar...
Eu a convidei, ela recusou: "Vou para minha casa", falou, séria. Quando disse que a levaria, falou que chamara um táxi. As pessoas se indo, ela esperando o táxi, eu esperando por ela (disfarçadamente eu havia dispensado o carro, a gorjeta doendo no meu bolso). "Vem, eu te levo", e o céu meio escuro a ouviu dizer sim e agradecer.
Sentou-se ereta no banco do carro, travou a porta e o cinto, e eu saí devagar, sem ligar o som. Sua respiração era curta e parou quando eu disse que precisávamos conversar. "Quero explicar porque não escrevi de volta: você fez uma pergunta que prefiro responder pessoalmente, e quero fazer isso agora" (as palavras cheiravam a medo até para mim).
"Não precisa", disse ela, "quem pergunta aquele tipo de coisa tem que estar preparado para a verdade, a mentira ou o silêncio. Eu já tive minha resposta".
Não insisti. Parei o carro sob um pé de acácia de uma ruazinha estreita e calma, sem saída, e perguntei-lhe o que queria. Ela respondeu que não podia querer nada, apenas sentia que o mundo tinha saído do lugar ou estava girando ao contrário, embora nunca, antes, as coisas parecessem tão certas; falou de saudade e da dor no estômago quando me via, e de um pouco de esperança. E questionou: " O que você quer?"
"Quero abraçar e beijar você, quero sentir seu cheiro e seu gosto, quero sua pele pregada na minha, quero entrar tão dentro de você que eu não consiga mais sair e quero ver você sorrir de novo". (As palavras cheiravam a verdade mesmo para mim.)
Ela anuiu, séria: "Faça isso, faça!, pois é o que eu também quero..."
Fizemos amor no carro mesmo, o sol saindo, os passarinhos fazendo festa, a nossa festa tensa, acabada, esgotada de prazer e pressa.
Eu a deixei em casa, finalmente, e me despedi com minha frase favorita, 'a gente se vê por aí'. Ela fechou suavemente a porta do carro e rebateu: "Não, a gente não se vê por aí; eu não espero ver você de novo".
Eu saí cantando os pneus, sem entender o que havia de errado.
Eu a senti macia e quente, eu a ouvi gemer e dizer palavras doces e sem nexo; eu a vi sob a luz do sol menino, o corpo moreno, suado, trêmulo, mas não a vi sorrir para mim nem uma vez, senão educadamente, quando, anos depois, eu lhe apresentei minha noiva... e eu nunca soube porque ela fugia.