Sem o que dizer
Naquela tarde de maciça solidão, no silêncio entrecortado por ruídos de almas e retratos, Anita e o besouro. Ela deixava escapar dos olhos amarelos e distantes, as entrelinhas de um outro mundo e se envolvia naquele ali, que surgira de repente.
Um ponto andante: pela página do livro, passeava entre palavras e letras, o pequeno inseto de couraça negra e longas antenas, por que ela abandonara a leitura. Frágil, tão pequeno, que não suportaria, com certeza, a pressão de seu dedo mínimo, caso ela quisesse estancar a vida que trilhava os veios do papel amarelado.
Ele seguia indiferente aos cálculos e aos questionamentos dela, como ela mesma seguia alheia à aritmética e às causas de Deus. Por algum tempo ficou ali, paralisada, em vigília. Deitada sobre as mãos acompanhava a marcha do desconhecido que surgira de algum lugar ignorado e sabia-se lá para que direção seguia ou que destino buscava.
E essa coisinha anda – avaliou. Como você, quantos outros inimagináveis desconhecidos peregrinam por aí, heim? — gracejou, transferindo, para o marcador de páginas que tinha em mãos, o bichinho.
Tudo indicava que o besouro tinha objetivamente um itinerário predeterminado, pois que continuou lá em sua trilha, indiferente a via por onde agora seguia. Não sei de onde você veio e nem para onde você vai, mas com certeza seu lugar não é aqui — Anita pensou alto.
Com cautela, entregou-o aos próprios cuidados à cabeceira da cama. Houve apenas um segundo de indecisão. Ele parou e como se vislumbrasse, então, a vastidão imersa em claridade diante de si, voou inesperadamente até a janela deixando-a surpresa e um tanto sem graça.
A cama era um amontoado de livros, cinzeiro e cigarros. Curiosa, Anita passou por cima de tudo e foi até a janela onde pousara o intruso, que mais uma vez fugiu deixando claro que sua presença era completamente desnecessária, senão ameaçadora.
Foi nesse momento que um sorriso-borboleta lhe pousou na face sabidamente pacífica. Encantada, ela se deixou acariciar pela repentina emoção de estar viva e ali, presente no movimento incessante, cruelmente quase esquecido, do mundo.
Lá fora, o sol amolecido, chocolate translúcido, adoçava o corpo das pedras, leitava com extremada quietação os seios das flores desnudando-os para os colibris famintos.
Foi que, naquela tarde de solidão azul, de sossego e ordem, de lugar algum veio o vento e, visivelmente transtornado, lhe roubou as palavras tirando-a do nada intenso para um universo subitamente experimentado. Da janela, absorta ela observava o corpo diáfano do vento que volitava. Tentava decifrá-lo com esmerado anseio, mas ele fugia como só um cavalo bravio pode, quando envolto na liberdade verde de uma pradaria infinita. Os cascos potentes sustentando o galope aéreo, quase vôo, ateavam para longe o que de mais leve havia no caminho e de seu dorso afogueado o calor fluía, borrifando suados segredos às folhas agitadas do coqueiro anão.
Ela acompanhava, como se a vida nascesse subitamente inteira dentro dela, o galope do vento sobre os telhados. Bailarino exibicionista, ele arriscava-se em rodopios cada vez mais velozes para se desmanchar, sem motivo algum, num risco breve e delicado. As folhas se aquietavam, então, e o mundo emudecia. Era como se Deus desligasse o universo, por minutos.
Recobrado, instante mais ele tornava à coreografia. As flores da buganvília passavam fúcsias, feito nuvens apressadas num céu de chão, sem azul algum, provocando as hastes da espirradeira vizinha que iam e vinham destilando vivíssimos vermelhos sobre o muro frágil, cruzando espaços sem distâncias.
Tudo o que era alforriado parecia viver seguidamente seu último momento de liberdade, sem previsão, nem medo. Ela se sentiu feito uma pedra. Não qualquer uma: uma boa pedra, imóvel e muda, mas inteira, ocupando o lugar que lhe cabia, por direito e dádiva, ao largo do quintal, como o tronco estirado ao pé do muro.
Pelos jardins as folhas, regadas por múltiplos tons de verdes, e as flores acenavam com estóica cumplicidade para quem pudesse suportar tão aguda beleza.
Sentiu a pele eriçar de frio. Depois, expectativa. Era o felino a espreitar a presa arisca, hipnotizado, irremediavelmente cativo. O vento dançava. Ia e vinha, vigoroso, altivo, bulindo silenciosa e ferinamente com a leveza de todas as coisas. Ela continuava lá de olhar tão cheio daquelas coisas fingidamente mudas, que nada, nada mais caberia ali: nenhuma imagem, sequer um cisco.
A cada lufada, o vento estirava sua língua veloz e lambia as faces da janela rumorejando com impaciência. Ele a convidava, seduzia, pouco a pouco, com a ousadia de quem se sabe de posse. Ela, instigada, também se apossava daquela terra recém conquistada, partilhando com o momento o gosto de uma nova identidade, uma outra natureza: era um pouco gente, um pouco planta, um pouco bicho, um tanto coisa. Um ponto solto na página do dia...
Os cachorros dormiam na perfeição de bibelôs sob as redes algemadas ao longo da varanda. Incentivadas pelas rajadas do vento, debatiam-se numa luta insensata, indo e vindo ao ranger dos ganchos fortes.
Leve, Anita deixou-se derramar, tocada por uma estranha sensação de amor e paz. Como se, aos poucos, as almas desprendidas de todas as coisas se grudassem nela em vigoroso abraço.
O universo, nu, acenava com o que tinha de visível e invisível. Com extremada calma, ela seguiu o chamado: abriu a porta e deitou, lá fora, sobre a grama verde, sem prudência e sem pudor. De olhos fechados e braços abertos, sob luz e calor do sol que se ia, considerou que morrer podia ser um pouco assim: partir se fragmentando, se diluindo em todas as coisas, sal e açúcar, até que nada mais restasse, senão o íntimo e indizível sentido de ser.
E se viu ali, dissolvida em cada pedaço, em cada fração de tudo que a rodeava: era verde, era quente, aveludada, fértil...
Delicadamente embalada por aquele vento amante, adormeceu. A noite veio. A casa silenciou às escuras. Lá dentro, protegidos pela luz diáfana da lua cheia, a caneta, o livro, a folha de papel e um primeiro parágrafo:
— Meus olhos não sabem escrever. Só sabem falar e, ler...
Era tudo. Algumas pessoas entenderam; outras, não. Umas souberam; outras, sequer lembravam.
Naquela tarde de maciça solidão, no silêncio entrecortado por ruídos de almas e retratos, Anita e o besouro. Ela deixava escapar dos olhos amarelos e distantes, as entrelinhas de um outro mundo e se envolvia naquele ali, que surgira de repente.
Um ponto andante: pela página do livro, passeava entre palavras e letras, o pequeno inseto de couraça negra e longas antenas, por que ela abandonara a leitura. Frágil, tão pequeno, que não suportaria, com certeza, a pressão de seu dedo mínimo, caso ela quisesse estancar a vida que trilhava os veios do papel amarelado.
Ele seguia indiferente aos cálculos e aos questionamentos dela, como ela mesma seguia alheia à aritmética e às causas de Deus. Por algum tempo ficou ali, paralisada, em vigília. Deitada sobre as mãos acompanhava a marcha do desconhecido que surgira de algum lugar ignorado e sabia-se lá para que direção seguia ou que destino buscava.
E essa coisinha anda – avaliou. Como você, quantos outros inimagináveis desconhecidos peregrinam por aí, heim? — gracejou, transferindo, para o marcador de páginas que tinha em mãos, o bichinho.
Tudo indicava que o besouro tinha objetivamente um itinerário predeterminado, pois que continuou lá em sua trilha, indiferente a via por onde agora seguia. Não sei de onde você veio e nem para onde você vai, mas com certeza seu lugar não é aqui — Anita pensou alto.
Com cautela, entregou-o aos próprios cuidados à cabeceira da cama. Houve apenas um segundo de indecisão. Ele parou e como se vislumbrasse, então, a vastidão imersa em claridade diante de si, voou inesperadamente até a janela deixando-a surpresa e um tanto sem graça.
A cama era um amontoado de livros, cinzeiro e cigarros. Curiosa, Anita passou por cima de tudo e foi até a janela onde pousara o intruso, que mais uma vez fugiu deixando claro que sua presença era completamente desnecessária, senão ameaçadora.
Foi nesse momento que um sorriso-borboleta lhe pousou na face sabidamente pacífica. Encantada, ela se deixou acariciar pela repentina emoção de estar viva e ali, presente no movimento incessante, cruelmente quase esquecido, do mundo.
Lá fora, o sol amolecido, chocolate translúcido, adoçava o corpo das pedras, leitava com extremada quietação os seios das flores desnudando-os para os colibris famintos.
Foi que, naquela tarde de solidão azul, de sossego e ordem, de lugar algum veio o vento e, visivelmente transtornado, lhe roubou as palavras tirando-a do nada intenso para um universo subitamente experimentado. Da janela, absorta ela observava o corpo diáfano do vento que volitava. Tentava decifrá-lo com esmerado anseio, mas ele fugia como só um cavalo bravio pode, quando envolto na liberdade verde de uma pradaria infinita. Os cascos potentes sustentando o galope aéreo, quase vôo, ateavam para longe o que de mais leve havia no caminho e de seu dorso afogueado o calor fluía, borrifando suados segredos às folhas agitadas do coqueiro anão.
Ela acompanhava, como se a vida nascesse subitamente inteira dentro dela, o galope do vento sobre os telhados. Bailarino exibicionista, ele arriscava-se em rodopios cada vez mais velozes para se desmanchar, sem motivo algum, num risco breve e delicado. As folhas se aquietavam, então, e o mundo emudecia. Era como se Deus desligasse o universo, por minutos.
Recobrado, instante mais ele tornava à coreografia. As flores da buganvília passavam fúcsias, feito nuvens apressadas num céu de chão, sem azul algum, provocando as hastes da espirradeira vizinha que iam e vinham destilando vivíssimos vermelhos sobre o muro frágil, cruzando espaços sem distâncias.
Tudo o que era alforriado parecia viver seguidamente seu último momento de liberdade, sem previsão, nem medo. Ela se sentiu feito uma pedra. Não qualquer uma: uma boa pedra, imóvel e muda, mas inteira, ocupando o lugar que lhe cabia, por direito e dádiva, ao largo do quintal, como o tronco estirado ao pé do muro.
Pelos jardins as folhas, regadas por múltiplos tons de verdes, e as flores acenavam com estóica cumplicidade para quem pudesse suportar tão aguda beleza.
Sentiu a pele eriçar de frio. Depois, expectativa. Era o felino a espreitar a presa arisca, hipnotizado, irremediavelmente cativo. O vento dançava. Ia e vinha, vigoroso, altivo, bulindo silenciosa e ferinamente com a leveza de todas as coisas. Ela continuava lá de olhar tão cheio daquelas coisas fingidamente mudas, que nada, nada mais caberia ali: nenhuma imagem, sequer um cisco.
A cada lufada, o vento estirava sua língua veloz e lambia as faces da janela rumorejando com impaciência. Ele a convidava, seduzia, pouco a pouco, com a ousadia de quem se sabe de posse. Ela, instigada, também se apossava daquela terra recém conquistada, partilhando com o momento o gosto de uma nova identidade, uma outra natureza: era um pouco gente, um pouco planta, um pouco bicho, um tanto coisa. Um ponto solto na página do dia...
Os cachorros dormiam na perfeição de bibelôs sob as redes algemadas ao longo da varanda. Incentivadas pelas rajadas do vento, debatiam-se numa luta insensata, indo e vindo ao ranger dos ganchos fortes.
Leve, Anita deixou-se derramar, tocada por uma estranha sensação de amor e paz. Como se, aos poucos, as almas desprendidas de todas as coisas se grudassem nela em vigoroso abraço.
O universo, nu, acenava com o que tinha de visível e invisível. Com extremada calma, ela seguiu o chamado: abriu a porta e deitou, lá fora, sobre a grama verde, sem prudência e sem pudor. De olhos fechados e braços abertos, sob luz e calor do sol que se ia, considerou que morrer podia ser um pouco assim: partir se fragmentando, se diluindo em todas as coisas, sal e açúcar, até que nada mais restasse, senão o íntimo e indizível sentido de ser.
E se viu ali, dissolvida em cada pedaço, em cada fração de tudo que a rodeava: era verde, era quente, aveludada, fértil...
Delicadamente embalada por aquele vento amante, adormeceu. A noite veio. A casa silenciou às escuras. Lá dentro, protegidos pela luz diáfana da lua cheia, a caneta, o livro, a folha de papel e um primeiro parágrafo:
— Meus olhos não sabem escrever. Só sabem falar e, ler...
Era tudo. Algumas pessoas entenderam; outras, não. Umas souberam; outras, sequer lembravam.