A CASA DE MEU AVÔ E O RELÓGIO QUE CONTAVA ESTÓRIAS

Lembro-me de que quando era criança, ao caminhar pelas ruas de Maceió, gostava de observar as várias arquiteturas das casas que via. Algumas eram alegres, outras tristes, muitas se mostravam modernas e a grande maioria era velha, porém, algumas eram tão velhas que se podia até ver suas rugas profundas produzidas pelo o tempo. Todavia, algumas pareciam assombradas, essas me impressionavam tanto, que mesmo querendo desviar o olhar, eu não conseguia. Havia uma estranha atração por elas que eu até hoje não sei explicar.

Lembro-me, igualmente, que conforme eu ia individualizando-as, podia até perceber as suas personalidades. E, assim, divisava algumas delas e ficava por algum tempo imaginando o que elas me diziam. Verdadeiramente, eu até conversava com elas, e algumas me pediam ajudas porque estavam muito doentes. Seus jardins estavam sujos e cheios de ervas daninhas, os parasitas impregnavam suas árvores frutíferas. Seus alicerces com as ferragens expostas e com colunas roídas expunham de forma escancarada suas feridas, que eram como câncer sem chance de cura. O pior era ver o grito de socorro e não poder fazer nada.

Todavia, quero aqui abrir um parêntese. A Maceió daquela época era uma terra de encanto. Onde se vivia muito mais do que se trabalhava. Pois, não raro encontrava-se por suas esquinas contadores de estórias, poetas, músicos, repentistas, filósofos, enfim artistas de todos gêneros. A grande maioria de sua gente simples, não tinha tempo para perder com estudo de livros acadêmicos, uma vez que estudava, de forma absorta, o livro da vida, dos mares, dos ventos, das estrelas e por aí conduzia sua formação pela universidade da vida.

Assim, qualquer criança jamais conseguia ver sob o crepúsculo do poente, diante da profusão de cores, que se formava no céu da praia da Sereia, as primeiras estrelas cadentes que costumavam riscar o céu. Pois, toda criança sempre acreditou que aqueles corpos celestes, que insistiam em riscar o céu, nunca foram fragmentos dos corpos que se desintegram quando em contato com atmosfera do planeta. Acreditavam, sim, que eram lágrimas de felicidade da suprema personalidade de Deus, que percorriam os confins do universo para nos agraciar com a sua existência.

Até os mendigos de Maceió eram diferentes. Lembro-me que certa vez estava na Praia da Avenida, acompanhado de meu pai e de meu padrinho. Padrinho, que era um homem muito culto, merece até um capítulo a parte, porém este não é o momento. Ele fora procurador da República. Não era muito tolerante com a burrice, tampouco com os vagabundos, e, por conseguinte, era um homem muito respeitado pelas autoridades alagoanas.

Estávamos num desses muitos quiosques que existiam por toda a Praia da Avenida, que costumavam servir “drinks” e tira-gostos. Eles estavam bebendo cerveja e eu brincava ao lado, fazendo castelos de areia. Quando apareceu um mendigo do nada, se dirigindo logo ao meu padrinho, dizendo:

- Ei, meu senhor, me paga uma cachaça. Padrinho olhou fundo nos olhos do homem, suspirou e disse:

- Pela sua franqueza, eu pago. Oh, Cícero, bota aí uma cachaça pro rapaz. Meu padrinho falando ao dono do quiosque.

O mendigo bebeu a cachaça. Fazendo um pouco de careta, limpou a boca com o antebraço. Depois deu uma sonora gargalhada.

-Oh rapaz, do que é que está rindo? Indagou padrinho.

Então, respondeu o homem:

-Eu sou um homem feliz... Porque não tenho amarras. Não tenho imposto pra pagar. Sou um homem leve... Porque não tenho elefantes nas costas pra carregar, e tampouco tenho preocupação se vão levar o que tenho. Porque não tenho nada do que possa ser levado. Ao contrário de vocês, que estão sempre preocupados em perder o que construiu. Todo o meu patrimônio ninguém pode levar. Tenho todo esse céu de estrela como cobertor, que me agasalha nas noites frias. Essa areia que me suaviza minhas costa como colchão quando durmo. Se tenho fome... Peço a um ou outro um pouco de comida. Sempre consigo algo para comer. Essas praias são sempre muito ricas de manjares dos deuses... Têm caju, coco, maracujá... mangaba, goiaba e cajá. Água-doce e sombra, que mais um homem poderia querer ganhar?! Se Deus já nos deu tudo que precisamos pra viver! Se quero uma cachaça... Sempre alguém aqui e acolá paga umazinha pra mim...

O homem se afastou aos risos e foi embora. Disse padrinho ao Meu pai:

- Tá vendo, Pedro, se todos os homens pensassem assim, ainda estaríamos vivendo na idade da pedra. Este tipo é um doido. Um ensandecido!

A beleza natural de Maceió, em parte, explica o porquê de tantos artistas espalhados por suas esquinas, porém, nem tudo é fácil assim. Existia algo de mágico no ar que não podia se explicado. A sabedoria daquela gente simples, que, em hipótese alguma, não se aprendia nos bancos escolares, sempre transcendeu à racionalidade da explicação científica. Eram almas como que escolhidas a dedos para estarem lá, vivendo dentro daquela aquarela surreal, pintada pelo o grande mestre arquiteto do universo.

Assim, era a Maceió de minha infância. Minha preocupação era ser feliz sem me aperceber que isto era uma preocupação. Quantas e quantas vezes eu, meus irmãos e meus colegas passávamos tardes inteiras na praia do Francês, mergulhando e colocando armadilhas de lagosta. Quando conseguíamos pegar algumas, improvisávamos ali mesmo uma fogueira e lá as preparávamos, sobre o braseiro da lenha nativa. Esse é um gosto para mim inesquecível, porque tem gosto de infância.

Quando às vezes me estendia mais do que o normal nas brincadeiras de praias, costumava dormir na casa de meu avô, principalmente, quando estava de férias da escola. A casa de vovô ficava em frente à praia da avenida, onde era o antigo terminal da praça do pirulito. Era muito mais perto da praia do que a minha casa, que ficava lá no alto do Farol.

A casa de meu avô era uma das casas antigas de Maceió, e, às vezes, na quietude de sua extensa idade, ela também rompia o silêncio e começava a tagarelar em prosaicas conversas. Contava estória de um tempo que já não existia mais, dos longos e longos testemunhos das conversas que presenciou quando os moradores dos arredores se reuniam ,no comecinho das tardes, e se sentavam, confortavelmente, em suas cadeiras de balanços, à beira da calçada, procurando o frescor da brisa do mar, que sempre soprava àquela hora, ali todos começavam contar causos, momento da vida política de Maceió de seus bastidores, informações e dicas sobre tudo que podia interessar. Falavam de músicas, de poesia, do carnaval, de religiosidade, sobre o gogó da Ema e, assim, iam conversando até a boquinha da noite. A vizinhança era boa e se dava bem. Todas essas conversas de fim de tarde, ficaram guardadas na memória da velha casa. Suas paredes pareciam páginas de livro quando danava a contar história.

Por dentro, a casa de meu avô era bastante grande. A porta de entrada - que parecia a porta da sede do palácio do governo, era gigante e dava entrada para uma grande sala de estar. Para além da sala existia um corredor imenso, que mais parecia um túnel interminável, ao longo do qual se tinha acessos aos quartos e ao banheiro social. Existia também, em toda sua extensão, varias fotografias emolduradas penduradas na parede e amareladas pelo tempo, bem como uma grande quantidade de gaiolas de passarinhos presas às paredes. Meu vô era aficionado por passarinhos. No final do corredor, chegava-se a cozinha, que para mim era, de longe, o melhor lugar da casa. Ali sim era muito bom de ficar, minha vó sempre ocupada em fazer gostosuras e eu ficava sempre à espera que uma ou outra coisa sobrasse para mim. Como, por exemplo, lamber o pirex onde era preparado o bolo. Ah... Isso era uma delícia, sempre rolava um estresse danado com os demais concorrentes ao pirex.

Porém, o maior interlocutor entre as estórias que a casa contava e os ouvintes, era mesmo o relógio de carrilhão que ficava na sala. Meu maior medo era perder o sono à noite, porque o danado do relógio não dormia nunca. Era durante as horas intermináveis da noite, que a casa escolhia para contar suas estórias embalada pelo ritmo constante do relógio. Durante o sono perdido, eu escutava os tique-taques intermináveis do relógio, seus sinos a cada meia hora e o seu show particular em todas as horas cheias. Então, todas aquelas pessoas das fotografias que não existia mais, ganhavam vida em minha imaginação e começavam a contar suas histórias. Ficava realmente apavorado, porém o meu maior pavor era ter que levantar para fazer xixi. Aí eu apelava, acordava quem quer que estivesse dormindo ao meu lado e o intimava a ir ao banheiro comigo.

Quantas e quantas vezes eu me cobria da cabeça aos pés, com medo de que uma daquelas pessoas das fotos ameraladas do corredor, que pertencia ao tempo que não era mais o meu, viesse sentar na minha cama. Era um suplício passar a noite acordado. Também os malditos passarinhos cuidavam para me manter acordado. Faziam barulhos com os mais variados tipos de ruídos, e, em cada um deles, eu tinha um fantasma particular a me assustar. Essa agonia só aliviava quando, cansado, eu conseguia pegar no sono.

Agora, o cômico de tudo isso, é que o filho da mãe do relógio de dia era silencioso. Parecia que escolhia à hora do dia para dormir. Ninguém percebia o danado, ele ficava quietinho lá no seu canto esquecido de todos. E, eu o olhava com os olhos atravessados, como que dizendo: eu ainda te pego seu danado!

Assim, o tempo passou e com ele a minha infância. Não consigo ver mais as lágrimas de felicidade, vejo apenas estrelas. O jardim do encanto em que vivia na infância, hoje é uma ilha de fantasia no imenso oceano de racionalidade que se transformou a minha vida. Porém, quando estou aperreado, desgostoso ou desiludido, é para lá que eu fujo – esse cantinho de memória que me trás as melhores lembranças. Corro direto para os braços da Praia da Sereia, que me abraça sempre muito forte com seus braços de estrelas. É lá onde eu me revigoro e encontro os pilares que edificaram os valores de minha vida. Praia da Avenida, Avenida da Paz, Praia do Saco, o Francês, a Lagoa de Mandaú, a Pajuçara, o Pontal da Barra, a Praia da Sereia e porque não o velho Farol. Esses eram os jardins de encantos de minha infância onde costumava brincar.

( Fábio Omena)

Ohhdin
Enviado por Ohhdin em 31/01/2010
Reeditado em 13/07/2011
Código do texto: T2061382