Sadicidez

O chapéu era o que o fazia passar despercebido por onde passava. Sua palidez era incrivelmente acentuada e seus cabelos tão louros que chegavam perto da branquidão de cabelos envelhecidos. Era estranha sua atitude, sempre com suas vestimentas negras ou escuras, o máximo que se propunha a usar eram chapéus ou sobretudos na tonalidade mais forte de cinza, em meio a uma cidade onde temperaturas abaixo de trinta graus são extremamente raras no verão. Independente da estação, clima ou temperatura ele não mudava nada em seus velhos e tediosos hábitos, muito menos sobre sua vestimenta. Quanta ousadia desse tal de clima!

Andava em direção ao centro da cidade, estava à procura de um apartamento. Sua vizinha, Angelina, de oitenta e cinco anos acabara de morrer. Morrera há três dias, e ele não conseguia mais dormir ou conviver naquele ambiente tão silencioso sem ouvir os grunhidos agonizantes de Angelina, sem seu ataque asmático. Ah, como adorava aqueles momentos, ela saia de si e, consequentemente, o levava junto. Cada murro na parede, justificado pela agonizante falta de ar, era Schopenhauer a seus ouvidos. Mas infelizmente em uma de suas crises, seu corpo não mais aguentou e dona Angelina, branca e fria, partiu para nunca mais esmurrar violentamente sua parede sabe-se lá que cor, afinal ele nunca entrara na casa de sua colega de condomínio. Como já era viúva a casa ficou lá, posta a venda. Essa era a hora de mudar-se!

A vida do alto louro homem foi seguida de mudanças, ele nunca teve facilidade para se sentir bem em algum lugar. Desde pequeno suas arqui-inimigas eram as formigas. Não podia passar um dia sem pisar levemente sobre elas e observá-las agonizando. Imaginava que, se falasse como os humanos, com certeza estaria o bombardeando com xingamentos e maldições. Isso lhe fazia muito bem, ver a agonia de alguém, mas logo após o sofrimento duradouro do minúsculo ser, a morte chega. Aprendera cedo e conturbadamente a lidar com a morte, já que esta vinha somente para tirar-lhe o prazer de ver alguém sofrer. Em momento algum passara por sua cabeça que a morte para o participante do seu show sádico viera como uma luva de salvação do sofrimento. As coisas jamais para este garoto e, hoje, para este homem podiam ser multilaterais.

O dia hoje estava com uma cara estranha, uma estranha confiança tomava-lhe conta. Faz dois dias que anda por todos os lados a procura de apartamentos. Antes de entrar e analisá-lo internamente, o prédio deve passar por sua perícia exterior. Não que deva ser arquitetonicamente niemeyeriano, inclusive não o deve, só precisa ser confortável intuitivamente. Odeia ambientes muito circulares, causa-lhe uma estranha sensação de redundância, estaticidade. Ficar no mesmo lugar é algo inaceitável. Normalmente também não gosta de vermelho, má impressão.

Chegara ao centro. Hoje iria visitar um prédio chamado Manhattan, mas desistiu graças ao nome. Odiava essa mania global de nomes estadunidenses dando a impressão de o prédio ganhar brilho aos olhos das mentes ignorantes. É só mais um dos ridículos nomes de uma nação duas vezes mais ridícula. Pegava-se parado ali, só relembrando disso. Como a raiva tomava-lhe conta rapidamente. Espantava-se consigo, ao mesmo tempo que começa a pensar, suas revoltas já vinham-lhe à cabeça, era tão rápido quanto a velocidade da luz.

Sempre se distraia, estava ali para a procura de um apartamento. Sua mente era como uma multinacional, poluidora de bons ares, trabalhava constantemente. Se deixasse seus pensamentos livres, talvez explodiria com suas amarguras sociais.

Agora resolvera focar-se. Baniu-lhe pensar além de seus objetivos desta tarde. Cansara de sua mente o tempo todo o perturbando, resolvera dar um descanso e iria ver o maldito apartamento, para que o seu estúpido sono voltasse ao normal. “Às vezes poderia voltar a dormir só mudando de local. Aquele apartamento é que estava acostumado com os grunhidos de Angelina, não eu”. Enganava-se inconscientemente.

Já passara das quatro da tarde, fora a dois apartamentos desde às sete da manhã. Era muito meticuloso, após o prédio passar por sua aprovação ele entrava e procurava lugares vagos e subia para vê-los. Mas tinha que passar um tempo ali, sozinho, no mínimo três horas, assim poderia avaliar seus sentimentos.

Chegara a um prédio amarelo, começara bem. Adorava a cor e não preocupava-lhe o preço. Subiu as escadas de pedras, e abriu a porta de vidro que separava os ambientes. Subitamente sentiu uma boa energia. Empolgado foi ao recepcionista e explicou-lhe toda a sua situação. Que habilidade com as palavras! Seu dom natural de conseguir tudo o que quer aprimorou-lhe outros sentidos necessários. Entrou no elevador com o corretor, mesmo sem marcar hora conseguira o atendimento imediado. Não sabia ao menos se havia apartamentos ou se estavam livres, mas algo o guiara até ali. Enganou-se ao entrar nos outros condomínios, mas neste tinha certeza de que algo de bom iria acontecer.

Oitavo andar. Seria este seu futuro andar? Apartamento oitenta e quatro. O velho homem que o seguira desde a recepção destrancara a porta e um cheiro de lugar abandonado subiu para todo o corredor. “Coitado dos moradores, devem estar sentindo esse cheiro terrível”. Este pensamento o satisfazia por dentro, na verdade queria gargalhar pensando nas possíveis situações que as pessoas poderiam estar enquanto o cheiro subia. Passou. Focou-se. Agora era hora de analisar.

Agora entendia o porque do cheiro. O pior apartamento. A vista era uma das piores, só se via prédio. Não devia ser alugado a um bom tempo. Abandonado. Não havia mais nada do que uma paisagem cinza e tediosa. Agradara-lhe. Mais um sinal de sua sorte.

Pediu gentilmente que o cavalheiro se retirasse para que ele pudesse analisar o apartamento sozinho. Era tão hábil que o senhor deixou-o sem um resíduo de desconfiança sobre alguma possível malícia.

O tempo passara, as coisas lhe agradavam, mas esperava mais. Se as coisas continuassem neste ritmo não seria o suficiente para fazer-lhe mudar-se pra cá. E o queria. Alguma coisa dizia que era pra fazer isso, mas suas amarras psicológicas e seus motivos sem fundamentos não o deixavam decidir. “Vou relaxar” pensou, caminhou em passos curtos até a varanda. “Que sorte, a porta está aberta”. Encostou na parede, pegou um cigarro e acendeu-lhe. Enquanto degustava olhava para a casa que correspondia a janela de outro prédio. Pelos seus cálculos visuais aquele apartamento deveria corresponder a um andar abaixo do seu. Um casal. Passou a prestar maior atenção na situação até que de repente o homem atira um prato na mulher. Avança nela, puxa-lhe os cabelos, soca-lhe a cara. Ela tenta reagir, morde-o mas a cada reação sangra mais. Era incrível, parecia que seus golpes cometidos eram friamente calculados, sabia onde faria ela recuar ou que não causasse um dano mortal que obrigasse-o a levá-la ao hospital ou a algum tratamento.

Um sorriso rasgou-lhe a boca. Uma risada, uma longa e deliciosa risada. Agora entendera as energias que sentira ao entrar aqui. Sabia que algo aconteceria. Maravilha. Todos os defeitos do apartamento oitenta e quatro agora se ofuscaram à beleza dos acontecimentos do apartamento à frente. Agora a briga terminava, com o homem dando um lindo tapa na cara da mulher cansada, aos prantos. Caída, sem forças, o homem puxou-a até o que parecia ser o quarto do casal e trancou-a ali.

Tudo aquilo excitara o novo morador. Decidira, estava certo. Aquele apartamento era dele e ninguém o tascaria. Explodindo de êxtase, aconchegou-se no íntimo do apartamento vazio e arrancara a roupa. Masturbava-se e pensava na cara triste e infeliz da mulher, na frieza do homem e subia-o o sangue de tesão. De olhos fechados viajava na cena, imaginando outros fins, outro desenvolvimento. Não lembrava-se mais do que era o mundo nem aonde estava, só pensava no prazer que sentia. Até que o melhor orgasmo de sua vida deixou-o sem ar. Fora melhor do que tudo que já praticara na vida. Perto do que acabara de acontecer todos os seus prazerosos términos de namoros não chegavam aos pés da máxima sensação descoberta. Era isso. Era esse. Descobrira o quão ácido e sádico era. A partir de hoje descobrira algo sobre si. Talvez pela primeira vez conseguira decifrar alguns de seus pensamentos que o deixavam em tudo desde que se conhece por gente. Sabia agora do que precisava, não havia mais dúvida. Entendera que era um sadicídaco.

DigoCm
Enviado por DigoCm em 30/01/2010
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