Ela
Não estava há muito tempo no restaurante quando eu a vi entrar. Sentou-se perto da entrada, numa posição que nenhum obstáculo me impediria de vê-la. De imediato, pensei: “será ela?”.
Os óculos escuros, inicialmente, não me deixaram chegar realmente a uma conclusão. Demorou um pouco para retirá-los; quando os retirou, quase tive a certeza. “Será ela mesma? Mas ela não se casara e, ao partir para o exterior, não dissera que nunca mais retornaria?”.
Apesar de alguns anos terem se passado, exatamente oito anos, não parecia ter mudado nada. Continuava belíssima. Seu extremo bom gosto quanto ao vestuário também ainda se mostrava presente. Essas minhas constatações iniciais me levavam a crer que era ela mesma. Mas, ao mesmo tempo, algo oculto não me permitia dizer com toda a certeza que, aquela mulher que se encontrava sentada a algumas mesas de mim era a mulher a quem eu devotara toda a minha paixão, a quem eu tão fogosamente amei, mas que nunca tivera como correspondência um signo real do amor, nunca!, apenas amizade, somente amizade.
A dúvida estava me corroendo. Se realmente era ela mesma, poderia ser a última vez que eu a veria, não poderia perder a oportunidade de lhe falar, de relembrar os velhos tempos, de tentar tirar de seu âmago algo relativo ao amor, de tê-la, finalmente, nos meus braços!
Eis que a minha consciência, às vezes minha inimiga, veio me indagar o porquê, diante de tamanho debate amoroso que aquela figura instalara na minha cabeça, eu não me levantava e não ia me achegar dela, tomava a cadeira desocupada da mesa em que ela estava instalada e dizia tudo que me estava fustigando? Ante tal indagação, fiquei acabrunhado; eu, simplesmente, não conseguia, por mais torturante que fossem os pensamentos, não conseguia nem, ao menos, me levantar, iniciar uma ação que me levaria a ela.
De inopino, quis que ela se fosse. Sim, que desaparecesse da minha vista num estalar de dedos, que virasse pó. Por que, por que ela escolhera justo aquele restaurante? Havia muitos outros na região, alguns muito melhores, mas ela resolvera vir justo a este, justo no qual eu resolvera trazer a minha infeliz existência para uma breve refeição...
Ela permanecia com olhar preso o cardápio, parecia querer evitar olhar ao seu derredor, evitar cruzar a sua vista com a minha, diria até me temer! Sim, me temer! Ah, mas como eu sou precipitado! Como chego a essas determinadas deliberações se nem ao menos tenho total certeza de que ela é realmente quem eu estou pensando, se nem ao menos tenho capacidade de descobrir o que é que está me impedindo de chegar à conclusão se ela é o meu amor platônico de outrora?
Quase tomado pela loucura (vê, querido leitor, como eu sou ansioso? Vê como eu me deixo facilmente ser subjugado pelo ardor da paixão?), meus olhos encontraram uma parte dela que sempre me extasiaram: seus pequenos e delicados pés. Mantinham, sem dúvida alguma, a beleza do passado. Ainda bem cuidados, adornados pelo que há de maior grau de bom gosto no que concerne a calçados femininos. Ah, como eles me trouxeram agradabilíssimas recordações...
Ela, enfim, chamou um garçom, fez o seu pedido e se dignou a olhar para o que a cercava. Tentei debalde escutar a voz dela. Passeou a vista por todo o ambiente; quanto mais seus olhos se aproximavam do lugar em que eu estava posicionado, mais forte meu coração batia. Quando chegou o momento, a frustração tomou-me por completo. Não, ela não perdeu mais que um segundo me contemplando. Nem ao menos uma das mulheres que eu mais considerava em minha vida me reconhecia, que alegria posso ter em viver? Mas e o detalhe, o detalhe que, sub-repticiamente, continuava a me dizer que ela não era a mulher a quem eu tanto amei?
Me esquecera, imerso nesses devaneios, de tomar o meu suco de laranja. Enfiei-o num gole goela abaixo. Não podia perder tempo com mais nada a ser com ela, tinha de saber se era ela mesma, o tempo urgia.
Vi, então, que ela atendeu o celular. Uma conversa breve, que a fez revirar a bolsa dela. Fui tomado, então, pela certeza de que era ela mesma, sim, não tinha mais dúvidas; consegui escutar a voz dela, e essa era a nota que faltava para que eu decifrasse o mistério.
Após a conversa, ela deliberou não esperar a chegada da refeição; sacou uma nota, a qual deixou presa numa das extremidades do cardápio. Pôs os seus óculos e se levantou. “Ela está partindo e eu aqui parado! Mas eu tenho certeza absoluta que é ela!”. Quando ela já estava no umbral do restaurante, coloquei rapidamente o valor do meu pedido em cima da mesa e me levantei impetuosamente. Não podia, de modo algum, perder essa oportunidade.
Ela já estava no meio da quadra quando eu consegui alcançá-la. Inspirei profundamente o aroma que aquela perfeição feminina exalava, tomei coragem e toquei-lhe o ombro. Quando ela se virou, um pouco assustada, já com o meu discurso na ponta da língua, fiquei transtornado: um rosto completamente diferente do que eu admirara e que tanto me torturara no restaurante se revelou diante de mim.
-Olá?, foi o que ela disse.
Fiquei mudo. Aquele singular acontecimento me tolhera temporariamente a capacidade de falar.
-Oi, moço. Aconteceu alguma coisa?
-Nada, nada. Apenas achei que fosse uma velha conhecida minha.
Ela sorriu e retomou o seu rumo, enquanto eu não conseguia me mover, tentando compreender o que acabara de me ocorrer.
“Será que eu enlouqueci?”
Quando eu finalmente consegui me mover, uma visão me restaurou a felicidade: ela surgiu do outro lado da rua, prestes a adentrar uma loja de roupa. Armei-me de meu sorriso e fui atrás dela, transbordando de felicidade.