Renascimento

Algumas lágrimas se fizeram presentes antes mesmo de o meu pai começar o seu relato.

“Se achegue, meu filho. Há tempos que quero te contar esta estória. Já está bem acomodado?

Bem, eu costumava ser um homem frio, inescrupuloso até. Seu avô, o qual você, felizmente, não conheceu, sempre me instruiu a ser o mais bruto possível, que não havia nada melhor que a força para resolver qualquer entrave. E nisso eu acreditei por um longo tempo, tomando tais palavras como um mantra, o norte de minha vida.

Trilhei o meu caminho rumo ao sucesso profissional tomando algumas ações das quais, atualmente, não me orgulho muito. Achava que tinha de ser como um rolo compressor, passar por cima de tudo que se interpusesse entre mim e o meu objetivo.

Assim constituí a minha vida até eu presenciar uma cena que me atingiu o âmago de uma forma tão profunda como nunca me ocorrera em toda a minha existência.

Acabara de sair da minha empresa, exausto em mais um dia de trabalho, tratando os trabalhadores como vermes. No caminho de volta para casa havia um arremedo de favela, que parecia diariamente comer um punhado de metros quadrados de suas cercanias. Pessoas vivendo em estado deplorável, animais vadios, veículos de variadas doenças desfilavam sua existência sem futuro pelo local.

Sempre passava pelo local com todos os vidros do meu carro fechados, devido ao medo de que alguém daquele lugar tentasse me fazer algo ruim. Mas, nesse dia, passei pelo local com o vidro aberto. E, nesse dia, escutei algo que me fez estancar o carro. Foi uma ação divina; disso, meu filho, não tenho nenhuma dúvida.

Escutei uma mulher aos berros, uma carrada de impropérios saía de sua garganta. E uma criança chorando. Choro de bebê. ‘Criança desgraçada’, ‘pequena praga’ entre outras coisas era o que a mulher estava dizendo. Segui a voz para descobrir o paradeiro da atormentada mulher. Os moradores me olhavam como se eu fosse algo exótico, metido numa das minhas habituais roupas sociais de alto padrão.

Sem temor, adentrei uma curta viela e logo encontrei a mulher. Ela estava prestes a jogar a criança num rio fétido, dominado pela sujeira. Ao ouvir os meus passos, ela se virou e começou a me fitar com um olhar perdido, desorientado, mantendo a criança no alto, na iminência de arremessá-la para os braços da morte.

Não dissemos nada durante o período em que travamos contato. Nada, nenhuma palavra. Ela parecia determinada a dar cabo da vida daquela criança. Quando ela ameaçou dar as costas para mim e finalmente matar a criança, balancei a cabeça negativamente. Ela imediatamente interrompeu o movimento. Olhou para trás, em direção ao rio, e tornou a olhar para mim. Novamente meneei a cabeça.

Os lábios dela começaram a tremer, ela queria dizer algo, mas não concretizou a ação. Colou os lábios e, de forma lenta, começou a se abaixar. Quando atingiu o chão, depositou a criança no solo e se levantou, mantendo os olhos fitos em mim. Em seguida, afastou-se sem dar as costas para mim, como um animal acuado, sem revelar os laços que a ligava à criança, se era mãe, tia, irmã.

Quando a mulher sumiu, me aproximei da criança e, naquele momento, fui tomado por uma sensação totalmente desconhecida para mim. Foi como se tudo o que fizera de ruim em minha vida estivesse se esvaindo naqueles segundos.

Acomodei a criança no colo e tomei a direção do carro, sem tomar conhecimento dos moradores que me circundavam no retorno ao meu veículo.

Havia uma coisa que muito me intrigou desde o início nessa criança, que tanto me mudou e me fez enxergar a vida numa ótica totalmente distinta da qual eu estava acostumado. Uma coisa pequena, ínfima até, mas que produziu em meu ser algo inominável. Me refiro a um sinal de nascença no pulso direito da criança, muito semelhante a um sol nascendo, como se fosse um sinal de que eu estava renascendo, tendo uma chance de me redimir de tudo que eu fizera de ruim.”

Maquinalmente, olhei para o meu pulso e vi uma marca extremamente similar a qual meu pai descrevera. Olhei para o meu pai. Um sorriso solar em seus lábios. As lágrimas que assomaram no início de seu relato finalmente inundaram-lhe os olhos. Antes que as lágrimas também me nublassem a vista, abracei-o como se fosse a última vez em minha vida.

Wander Assis
Enviado por Wander Assis em 28/01/2010
Reeditado em 29/01/2010
Código do texto: T2056757
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