A faxina
Um pequeno apartamento de dois quartos, num bairro classe média da capital, abriga a sobrevivência. Não há lugar para se guardar sonhos, arte, futuro. Mensalmente as contas são pagas. Os sorrisos pálidos. Pela porta entra e saí diariamente uma chefe de família. A artista sonhadora foi expulsa na última faxina, no mês de julho.
O relógio galopava. Férias trocadas por arrumação. Encontro marcado com o passado. A escada alta alcançava os maleiros que hora após minutos se enchiam ainda mais de ar. As cartas relidas pela penúltima vez afugentavam o medo de perder quem ela fora. Os álbuns comprovavam o que sua memória insistia em não reter; os personagens, os roteiros, as cenas. A diretora. Os discos entoavam dias frios, cobertor, pisada de meia no chão; conversas intermináveis no velho sofá; porres; despedidas; festas; separações. Cada CD recontando sua versão da história. As roupas que não entravam refaziam seu percurso individual no tempo, cada desfile no cotidiano. Nos diários as dores encadernadas, as conquistas amareladas, as páginas finais por preencher. Os livros e seus marcadores de etapas saltadas. Aprendizagens, passagens mimeografadas na memória. A perda de convicções. Quimeras. Ídolos destruídos. Mortais imortalizados. Incontáveis horas ainda por ler.
Cada caixa que saía do apartamento apertava-lhe. O espaço se tornando mais amplo e ela diminuída. Eram sacos e mais sacos de lixo. Daqueles pretos. Cem litros ali de documentos. Cem litros acolá de cacarecos. Cem litros aqui de bibelôs. Cem litros pra lá de matéria-prima para realizações futuras. Mexida profunda. Os armários se abrindo. Seu peito se contraindo. As contradições não começaram aí.
Muito antes a necessidade de concretizar projetos de vida deslocou estantes, livros, mesas, papéis, móveis, poeira. Desengavetar sonhos. Realizar. Terminar a costura de uma infinda colcha de retalhos iniciada na adolescência. Resolvera apenas procurar as agulhas, as linhas coloridas, os tecidos tão carinhosamente recortados em vários tamanhos e formatos. Não sabia que quem terminaria recortada seria ela.
Difícil mesmo foi se livrar da compulsão de ser feliz. Anos e anos juntando jornais para futuras construções em papier marché. Peças diversas para instalações artísticas. Sucatas para enormes oficinas de criatividade com crianças, jovens e adultos. Vidros e latas pululantes de idéias. Partes diversas de exposições e exposições de experiência e beleza para erguer. Engenhocas. Invenções. O que poderia parecer uma obsessão de guardar passado era crença no futuro. A possibilidade de fazer arte. Dela viver.
Pensava, para tudo o destino é o lixo, ou o pó. Assim, então, será. As caixas são sepulcros Continuava sendo assim. O carro fúnebre do serviço de limpeza urbana não tardaria levar a caixaria de aplausos, de sorrisos, de criatividade, de prazer. Para longe se iria em cortejo a arte. Não mais para ela. Para algum catador de lixo. Para alguma fábrica de reciclagem. Para se perder caída em um terreno baldio ou asfalto qualquer. Se foram e levaram. Partida. “O conhecimento serve à sobrevivência, a arte à vida”, registrava o bilhete levemente rasgado fugido de algum saco e levado ao vento, nem tão longe dali.
Solange Pereira Pinto