Anedota da porta contrária

Stanislaw chegou a Campo Bom inclinado. Sua inclinação era intelectual, pobre vivente. Amava as pombas como desejava ser manso a fim de herdar o Reino. Manso, mesmo sem herança; sempre fora assim. Reconhecia que mansidão e covardia não caminham juntas. Mansidão exige paz de espírito; covardia paralisa.

O remédio para curar sua neurose foi enfrentar o medo. Cá está, Stanislaw, sonhando que encontrou o amor. Levanta às cinco e meia da manhã, faz o seu ritual diário de higiene, come agradecido o pão de cada dia e segue a pé rumo ao trabalho pela ciclovia. Nunca vira nada igual: pessoas conduzindo bicicletas, bicicletas conduzindo pessoas, quantas bicicletas! Quantas pessoas! Ciclistas na ciclovia, que lindo! Stanislaw saltitante chega quase cantando ao batente. De tão poético, é conhecido como “Fly” na fábrica de calçados onde trabalha há quase cinco meses. Fora uma experiência difícil até ser efetivado, que sufoco!

Quando, pela primeira vez pediu para ir ao banheiro, recebeu uma chave com um número enorme pendurado, não raciocinou que aquele era o número da porta onde deveria entrar. Imaginou estupidamente sei lá, que aquele fosse o número da sua seção. Nunca havia trabalhado em fábrica e só tivera coragem de pedir essa dita chave depois de expirar o contrato de experiência.

Entrou no banheiro onde havia muitas portas numeradas. Como critério de escolha usou a lógica das borboletas e dirigiu-se ao “cinco” por ser ímpar. Não cogitou o “três” por questões meramente desconcertadas: O três lhe pareceu muito ímpar. Mal saíra do banheiro e deu de cara com o gerente já de plantão na porta. Sumariamente xingado e (in)devidamente humilhado, Stanislaw respirou fundo e reassumiu sua posição na produção. Mas seus olhos viam turva a esteira louca e os calçados atropelaram suas mãos trêmulas. Desconsiderando o mico e os olhares piedosos dos colegas, Stanislaw correu para o banheiro nº. 3 e desandou em pranto incontrolável. Tentou de todas as formas acalmar-se. Voltou ao trabalho mas novamente correu para o banheiro. Isso repetiu-se algumas constrangedoras vezes. Ninguém dizia nada. Na verdade ninguém mais brincou naquele dia. Stanislaw quase entregou o guarda-pó. Quase.

No dia seguinte, a paixão pela ciclovia não andava saltitante, mas prosseguia contemplativa. Os passos vagarosos destoavam dos demais e Stanislaw não fez menção de alarga-los. “Aqui os passos são largos e vigorosos, no ritmo do progresso.” Progresso lhe soou ultrapassado como a ordem estampada na bandeira nacional. “Eu é que estou ultrapassado. E por que não há de ter ordem onde impera a corrupção?” Stanislaw aquieta o tolo pensamento e sorri tristemente seu amor. Considera tão poético ser operário! “Sou um operário afinal!” bicicleta, sindicato, cada lugar percorrido nesta ciclovia acalenta seu coração nu. Mas não é hora de dormir. A alma missioneira clama por justiça e se junta aos clamores do mundo. Stanislaw é manso das Missões, terra de Sepé Tiaraju.

No movimento social por moradia, entrou no grupo sete, predominado por “sem-teto” de Santo Ângelo. Até brincam que Campo Bom parece filial de lá, por tanta gente que chega fugindo do desemprego. Stanislaw vê algo no grupo sete. Santo Ângelo foi a última redução jesuítica missioneira. Coincidência? Êxodo, seca, violência: palavras que permeiam o noticiário gaúcho como sombras passageiras. Para Stanislaw, em nada superam “os sobrantes” do qual faz parte quase orgulhosamente, que estranho. Quase? Sobrantes pra quem?

Digressões à parte, Stanislaw passa o cartão-ponto e sem encarar ninguém, concentra-se no trabalho. O susto foi geral quando subitamente parou a esteira. Todos os operários foram chamados ao banheiro. Havia sujeira por toda parte; cocô pelas paredes, no chão, na porta nº3, um verdadeiro horror, um nojo. Como ninguém confessou, todos culpados. Cada qual ajudou a limpar, na raça.

As mulheres permaneceram na esteira parada, aguardando os colegas. A equipe estava capenga, mas Stanislaw naquele momento asqueroso sentiu ser parte da classe, da comunidade, do corpo unido dos operários, uma bandeira sul-americana. Equipe, família, grupo; o nome é questionável, mas a união, quem sabe.

Stanislaw borboleteia tolas idéias, intelectualóide com pretensão humana. Ri do próprio pensamento enquanto limpa sua cota da sujeira que não fez.

Nem toda anedota é feita pra rir.

Vanessa Utzig
Enviado por Vanessa Utzig em 24/01/2010
Código do texto: T2048262
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