Esperança mansa
Na fila do SUS, Melquideseque já não pensa na dor aguda que o levara ao sr.dr., mas considera a ambivalência da própria sina que resignado, por vezes questiona. Foi quando, olhando os rostos vagos que o antecediam, voltou-se para o computador da moça alheia ao povo bizarro. Eis as palavras que seguiam ininterruptas na tela: “A única luta que se perde é aquela que se abandona”. Ficou matutando a dita e tomou-a por sua. Enfrentou a fila com novo ânimo e o prognóstico médico aliviou seus temores. Somente ao chegar em casa e ver o varal tomado de fraldas, riu endiabrado da crença belíssima.
- A única luta que se perde é aquela que se abandona. - repetiu à mulher, indiferente aos carros velozes que seguiam na pista. Moram à beira da estrada e os vizinhos também conhecem filas.
- O quê?- pergunta Marilda, com prendedores de roupa na boca.
- A única luta que se perde é aquela que se abandona. - tornou ele.
Marilda sacudiu outra fralda e respondeu:
- Profundo. Vou pensar no assunto.
Pensou. Antes de dormir, após a novela, disse ao marido:
- Amanhã vou ao Dr.
- Ta doente? – sobressaltou-se Melquideseque.
- To grávida. Não posso abandonar a luta.
- Mas e os comprimidos?
- E a camisinha?
-...
- Eu te disse que confio desconfiando.
- Vamos encarar?
- Depois desse, encerramos.
No silêncio ouviram o ruído de sempre, dos carros de outros com rumos distintos. Melquideseque com sua filosofia roubada adormeceu cansado, antes de questionar a sorte dos conformados.