A RAPADURA DO CÉU

No dia seguinte a multidão que ali estivera percebeu que naquele local havia só um barco e que Severino Jesus não tinha entrado nele. Então chegaram outros barcos de Tiririca, um lugarejo daquela região. Quando o povo notou que nem o beato nem os seus seguidores estavam mais ali, as pessoas entraram nos barcos e foram procurá-los em Camandaroba, outro lugar próximo, só que do outro lado do açude. E não é que os encontraram?

Aí, curiosos, resolveram perguntar ao Severino: “Sinhô, quando e como vosmecê veio pra cá?” Respondeu com ar crítico o beato Severino: “ Ôxe! Que interesse é esse?! Garanto que vosmecês estão me procurando não prumode falei de Deus, mas prumode comeram a rapadura que eu distribuir e ficaram de bucho cheio. Gente: se esforcem não por um ‘de comê’ que se acaba, mas por um ‘de comê’ que dura a vida eterna. É esta a rapadura que o meu Deus tem pra nóis e que eu tento lhes mostrar”. Então eles indagaram: “O que é que nóis tem que fazer pra agradar a Deus?” Severino respondeu: “Comece a praticar o que eu ensinei; comece a comer da outra rapadura”. Eles replicaram: “Que prova vosmecê nos dá que é de Deus o seu ensinamento? Cadê a sua Igreja? O nosso padre estudou muito e já esteve até no Vaticano”. Severino respondeu: “Igreja não é uma casa, um prédio. E o padre não é mió do que ninguém que conhece e distribui também a rapadura do céu – a palavra de Deus. E eu tenho esse alimento que adoça a minha vida e pode adoçar a vida de vosmecês também e por toda eternidade”. Disseram-lhes eles: “Entonce dê a nóis sempre dessa rapadura”. Severino aí acrescentou: “Eu a carrego e ofereço o tempo todo e vosmecês não dão nenhuma importância. Quem comê dela não vai mais sentir fome e quem crê em Deus nunca mais vai sentir sede. E só assim é que nóis vamo ter vida eterna”.

Algumas pessoas ali começaram a murmurar contra ele por causa disso e diziam: “Um comedô de angu como nóis dizendo que tem uma rapadura que veio do céu; um ‘de comê’ que faz a gente viver sem fim”. Porém Severino as repreendeu: “Ói, parem de murmurar. Não falo por mim mesmo. Ninguém aceita o que vem de Cristo se não for de Cristo; todo aquele que entende a palavra de Deus acredita no que o Fio de Deus pregou e é o que eu prego também. Sei que não sou nada, mas tenho a sua unção. Quanto à rapadura comum que dá sustânça só ao corpo e que distribuir ontonte, hoje não tem pra ninguém. Chega! Hoje e agora só quero distribuir a outra rapadura – a divina”.

E após dizer isso, as pessoas, pouco a pouco, começaram a se retirar deixando aquele lugar. Severino virou-se então para Pedro Chico, um dos seus seguidores, e comentou: “Tá vendo?! Quão difícil é a gente evangelizar! O povo só quer coisa materiá”. E Pedro Chico respondeu: É... Mas uma rapadurinha mesmo agora até que caía bem!”

(Continuação de um conto aqui já publicado: “A MULTIPLICAÇÃO DA RAPADURA”, paródia nordestina de um texto do Evangelho).