Rotina
Sou a moradora do segundo andar, apesar de querer realmente morar no primeiro, de onde a vista é mais privilegiada. Você provavelmente não me conhece, assim como o restante dos meus vizinhos. Eu vivo aqui, só comigo, e não vejo problema algum nisso. Faço o que quero quando quero e ninguém pode controlar minha vida. Pensei em ter um gato, para me fazer companhia, mas acabei concluindo que seria trabalho demais. Estou sempre lendo um bom livro, e eles me garantem a companhia de que preciso. Gosto de ouvir Anita Backer tocando bem baixinho no CD player no final da tarde, quando me sento na varanda, bebo minha dose diária de vodka barata e fico observando o movimento dos moradores, entrando e saindo, vivendo suas vidinhas miseráveis. Alguns são interessantes, como aquele casal do carro branco. Eles saem todos os dias discutindo, e quando voltam pra casa, estão só risos. E eu me pergunto que tipo de rotina doentia é essa. A senhora do terceiro andar também me chama muito a atenção. Ela recebe muitas visitas de técnicos de todas as espécies: encanador, eletricista, aquele que conserta eletrodomésticos, o cara da TV a cabo. Todos eles aparecem com freqüência em sua casa, e ela os trata muito bem. Pelos barulhos estranhos que ouço às vezes, acredito que eles devam prestar muitos serviços a ela. Crianças não me causam curiosidade, por isso não tenho nada para falar delas. Há também um senhor de uns cinqüenta anos, que mora no oitavo andar, que sai todas as manhãs para passear com um poodle horrível e fica me olhando. Outro dia ele piscou pra mim e me mandou um beijo. Pobre homem, ele nem imagina. Os homens não me despertam interesse. Na verdade, eu gostaria de encontrar uma mulher que me fizesse todas aquelas coisas que passam em filmes de lésbicas. Esse é meu verdadeiro sonho, encontrar uma boa amante, para passar as madrugadas comigo fumando um cigarro na varanda e curtindo Sade. Muitas vezes gosto de ficar sentada nas escadas e imaginando o que as pessoas estão fazendo em seus apartamentos, do que elas gostam, o que comem. É uma obsessão estranha, mas sinto prazer em inventar vida para os outros. Numa noite dessas, estava muito quente e decidi ficar nas escadas ouvindo Aretha Franklin no Ipod, com meu copo de vodka e gelo, e ela surgiu. Aquela que eu sempre esperava, a minha amante fantástica. Era morena, de olhar decidido. Ela me pegou pela mão e me levou à loucura. É só o que posso contar, pois os detalhes são íntimos demais, e cabe a você imaginar, assim como eu imagino tudo o que você faz quando fecha sua porta. Você pode até cruzar comigo um dia pelos corredores, mas saberá apenas que sou a moradora do segundo andar.