Aquilo que escapa
A menina Alice só percebia o que ouvia. Não perdia um palanque, um palco, um caixote. Suas orelhas abanavam pelos discursos, pelas retóricas, pela fala barata, pelas histórias inventadas. Passeando pelo sótão do casarão antigo que vivia desde sempre, encontrou empoeirado um objeto olvidado. Era tarde quando o cuco cantou. As mãos sujas giravam incessantemente aquele tubo numa procura excitada e insistente. O vidro encardido não permitia enxergar. O silêncio era algo que a incomodava. Justapunha no vago os sentidos para rasgar véus. Um sem número de vezes subiu a escadaria que conduzia àquele quarto visitado em dias especiais. Sem tempo, sem medo. Os ecos repetidos dos objetos mudos espalhados, guardados, esquecidos, costuravam a harmonia daquele caos. Sua família havia saído para um passeio cordial, nos pampas gaúchos. Era no chão de cimento frio que gostava de ficar mirando a janela apontada para o Jatobá. A moringa de barro espatifara-se num espreguiçar de braços a peito aberto. Seus pais voltariam em três dias. Ia para a octogésima oitava volta, na ânsia de revelar o que não havia motivo no cilindro, os ponteiros iam também. As centenas de cacos agudos, poligonares, triados, obtusos, duados, versáteis, argamassados na água com gosto bom de barro, amoleciam. As lamparinas e as velas se revezavam. Não cegavam as formas multicolorfacetadas que a retina retornava aos sentidos. Livros pendurados, quadros enfileirados, brinquedos adormecidos edificavam sombras sob o pé direito. O rabisco no teto indicava: “o que se faz a frio, quente se come. Dá uma fome danada” Alice, rolou mais uma vez seu caleidoscópio. Discreto, vazio de intento, que descrevia sem explicação segredos em um palmo fechado.
Solange Pereira Pinto