A CASA DO SUBÚRBIO

- I -

Entrou na ponta dos pés, abriu as panelas espiando o cozido fumegante. Procurou um pedacinho de pão e enfiou no molho. Queimou a língua e bebeu água da torneira.

Uma freada brusca na rua em frente o fez arrepiar. Alguém gritou. Engoliu seco e correu para o quintal. Homens encapuzados e fortemente armados empurraram a porta que estava destrancada. No quintal o cachorro latia amarrado e as roupas estendidas na cerca ainda gotejavam

Ele veio ao encontro dos homens e levou um tapa na cabeça e saiu com eles até o bar, avistaram a moça de blusa amarela que corria descalça e fizeram-lhe um sinal e ela parou de correr, sentou-se na calçada e parecia chorar.

A rua estava vazia e no bar apenas uns gatos vigiavam o movimento da porta. A moça levantou-se e veio até o bar. Os homens a cercaram de perguntas. Ela olhou para ele e abaixou os olhos chorosos. E o levaram.

- II -

A molecada corria atrás de uma bola murcha e rasgada. No ar um cheiro de churrasco e alguma música. O bar estava fechado.

Ela trazia umas sacolas e andava sem pressa. Na esquina outras pessoas também carregavam sacolas aguardavam a perua fretada. Um táxi parou na contramão e dele saltou um homem moreno e forte e armado que cumprimentou as pessoas. Parou diante dela e lhe tomou as sacolas.

Um moleque chutou com força a bola que bateu nas costas do homem. Ele se voltou e xingou os moleques e deu um tiro no traste da bola. Os meninos correram.

A perua estacionou e todos embarcaram. Ela abraçou o homem armado e correu para embarcar na perua. O homem ficou olhando o carro desaparecer na poeira.

- III -

O homem moreno e forte entrou na casa e fez festa para o cachorro. Soltou o bicho da corrente. Abriu a geladeira e pegou um refrigerante. Sentou-se num banco e ligou a TV e adormeceu ouvindo a propaganda eleitoral. Acordou com os latidos do cachorro.

Ela voltou sem as sacolas, tinha os olhos vermelhos de chorar e disse que era uma alergia. O homem fingiu acreditar. Ela ofereceu um pedaço de pudim, ele recusou. Ele perguntou pelos velhos e ela deu de ombros. Ele lhe deu algum dinheiro. Atendeu uma ligação do celular e saiu.

- IV -

Ela foi para o tanque e torceu umas toalhas e pendurou-as na cerca. Lavou os cabelos com sabão e sentou-se num banco para secar ao resto de sol. O cachorro acompanhava seus movimentos e ela fez um carinho no animal. Chegaram uns meninos que lhe pediram água,

ela mandou que bebessem da torneira do tanque e pediu que levassem o cachorro embora.

Ela entrou em casa, os cabelos ainda molhados, trancou a porta e se jogou no sofá. Acendeu um cigarro e desligou a TV. Dormiu e sonhou.

- V -

Os velhos estavam em casa de parentes. Foram poupados da tragédia e sua criança era apenas uma vaga lembrança.

Raspou o resto do cozido da panela, lavou a louça, colocou suas roupas na mala, olhou-se no espelho, trancou a porta e foi para a esquina esperar.

Alguém lhe chamou. Era o dono do bar. Ela sacudiu os ombros. A perua parou, desceram alguns passageiros. Ela entrou sem sorrir, abraçou a mala, fechou os olhos e disse adeus.

- VI -

A patroa era muito bonita e enfeitava-se muito. O marido lhe dava muitos presentes e viajava sempre. Elas se falavam pouco, apenas o essencial sobre o serviço da casa. Filhos não havia. Apenas gatos, brancos, peludos e preguiçosos.

Deu-lhe um quarto bem arejado e amplo. Não parecia quartinho de empregada. Os armários eram enormes. Seus poucos pertences couberam numa única gaveta da cômoda.

Usava um uniforme elegante. Não precisava das roupas. Raramente saía, apenas para a visita mensal. Não levava sacolas e sim um pouco de dinheiro separado em envelopes: para ele e para os outros. O restante guardava e sonhava.

- VII -

Na última visita recebeu a notícia: ele não mais estava lá. Fugiu. Ela voltou ao bar. O dono do bar lhe contou. Procurado. Caçado. Marcado. Ela procurou o homem moreno e forte e armado. Nada a fazer, ele disse. Esperar. E ela esperou.

- VIII -

Assassinaram o marido da patroa quando ele voltava do trabalho. Foi emboscada. Ela soube então que o patrão era um juiz e muitos não gostavam dele.

Foi vingança? E ele? Estaria envolvido?

Esperar e rezar. E ela rezou.

- IX -

Entrou na ponta dos pés, espiou a panela vazia. Não havia pão nem molho, nem queimou a língua nem bebeu água da torneira.

Alguém gritou. Engoliu em seco e correu para o quintal.

Alguém empurrou a porta que estava destrancada.

Ela foi ao quintal. Vestia a velha blusa amarela, e parecia chorar. Ele se aproximou e cercou-a de abraços e beijos. Ela olhou para ele e abaixou os olhos chorosos.

- X -

O homem moreno e forte e armado entrou na casa pela porta da frente que estava aberta. Abriu a geladeira e pegou um refrigerante, sentou-se num banco e ligou a TV.

Eles entraram abraçados.

Um moleque chutou com força uma bola que bateu na vidraça, o homem moreno e forte puxou a arma e xingou.

Ela sacudiu os ombros e ele abriu os braços. O homem atirou duas vezes. Ele caiu e ela se jogou ao chão.

O homem moreno e forte e armado fez uma ligação do celular. Uns moleques apareceram, espiaram e correram.

O táxi parou defronte à casa do subúrbio e ela embarcou chorando. O homem moreno e forte e desarmado entrou no bar e pediu um refrigerante. A TV exibia a propaganda eleitoral.