Meritíssimo
MERITÍSSIMO
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Chegou em casa e, para variar, a mulher não estava.
- Foi ao dentista.
Mandíbula de tubarão, pensou, com sete fieiras de dentes que se renovam progressivamente.
- Tinha hora no salão.
Podia, pois, chegar com os cabelos úmidos e a maquiagem fresquinha.
- Precisava de umas coisas do súper.
E, com certeza, ia passar no supermercado e largar o comprovante do cartão em sua mesa, com um gesto de estudado, mudo desafio. Como quem diz, aqui está a prova, insira-a nos autos.
- Chegou o sapato que encomendou no shopping.
Diria que a cor não era bem aquela, que imaginava o modelo bem diferente. E lhe mostrará a pulseira que comprou ao invés de.
- Hoje é dia de chá da turma da faculdade.
E só isso já será suficiente para justificar algum desalinho na roupa, no cabelo, na compostura. Uísque, seu aperitivo preferido.
- Foi buscar a criança na escola.
Desprendida com o filho dos outros: da irmã, da cunhada, das vizinhas, de uma amiga subitamente adoentada. Embora sempre tivesse adiado o projeto de um filho deles.
- Foi buscar o carro na oficina.
E sempre o mais fácil: furou o pneu. Muito buraco nas ruas desta cidade, uma vergonha!, justificava. Justificava pneus sem câmara que esvaziavam sem furar.
- Foi levar a prima no médico.
Vivia no hospital atendendo a prima distante, pobre e etérea. Ele dificilmente a via, a esta prima podre.
- Disse que ia ao cinema.
Sim, precisava espairecer um pouco, distrair-se um pouco. A culpa é sua, que nunca me leva. Sempre com serviço para fazer em casa, nunca tem um tempinho assim para mim. Embora jamais soubesse precisar o diretor ou o nome dos atores, sequer a cena do crime, digo, o local da ação. Não vou ocupar minha cabeça com coisas sem a mínima importância, fui lá para me divertir, passar o tempo, não para presidir um inquérito.
- Dia de trabalho no Centro.
Verdade, sua ação social, o trabalho espírita de amparo aos carentes e necessitados, os sofridos da periferia social. Nesses dias chegava com os olhos brilhantes de fervor, uma certa compunção mística a convulsionar-lhe a face, uma discreta febre a tomar-lhe todo o rosto.
Como a roupa, dificilmente repetia desculpa na mesma quinzena.
- Um cafezinho, Meritíssimo? Acabei de coar...
2
Jonas Negreiros, 36 anos, brasileiro, amasiado, residente na localidade conhecida como Morro da Covanca, etc.,
N.S.Desterro, abril de 1999
(Amilcar Neves, escritor)
O texto acima foi premiado no "2o. Concurso de Contos ler&Cia", promovido pelo Grupo Livrarias Curitiba, e publicado na revista "ler&Cia" número 30, de janeiro/fevereiro de 2010, em edição de 220 mil exemplares disponíveis gratuitamente nas lojas das Livrarias Curitiba, Livrarias Catarinense e Livrarias Porto nos estados de São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul.