A enchente e o vigário
A chuva castigava a cidade já fazia três dias, sem parar, parecendo que o céu estava se acabando em água e, lógico, os locais mais baixos, perto dos rios e riachos que cortavam a cidade, foram ficando em estado de calamidade, com muitas casas com água até na altura dos telhados. Algumas pontes já estavam encobertas, dificultando a passagem até de caminhões e ônibus, lotados de desabrigados e de pessoal que decidira deixar a cidade, antes de ficarem totalmente ilhados, mesmo porque ela se localizava em um extenso vale, cercada por montanhas. Para piorar o quadro, em vários locais montanhosos, a terra encharcada começou a deslizar rumo a muitas residências, prédios públicos, lojas etc., principalmente nas vias de acesso por terra, tudo isso com uma fúria impressionante. Acredito que somente aqueles que tiveram o infortúnio de passar por algo semelhante poderiam aquilatar o desespero do povo, sentindo-se impotente perante a força indomável da natureza.
Dentro desse quadro de horrores, o pároco, permanecendo dentro da igreja matriz, rezava fervorosamente, rogando a Deus para que olhasse pelo seu rebanho, com misericórdia, e que Ele, com todo Seu poder, interviesse na fúria destruidora que ocorria lá fora. Foi daí que um bombeiro, munido de um bote salva-vidas, enfrentando a tempestade, entrou por uma das janelas da igreja e correu para acompanhar o padre para fora, antes que fosse tarde para ele se salvar. Qual não foi a surpresa do bombeiro quando o sacerdote falou alto, em bom-tom, que ele não iria abandonar a sua paróquia, porque tinha fé profunda em Deus e que ali ele estaria a salvo do desastre maior, convencendo o seu salvador, a duras penas, a ir-se embora, enquanto houvesse chance.
Com o passar do tempo e a chuva não dando nem um minuto de trégua, o vigário viu-se obrigado a sair do segundo andar para subir ao alto da torre do sino, pois a água já havia, praticamente, acabado com a comunidade inteira, não sobrando mais sobreviventes no local. Por não haver mesmo quaisquer condições para se entrar na área alagada, o Corpo de Bombeiros achou por bem sair em socorro do padre, usando um helicóptero de resgate, empunhando megafones para se comunicarem com ele, incitando-o a sair da torre, a fim de ser resgatado pelo alto. Nada adiantou - o pároco gritava a plenos pulmões: “Eu tenho fé em Deus e sei que Ele me salvará”; assim, por um período de mais meia hora, os “anjos da guarda” tentaram o que foi possível, até que a torre, não suportando a força das águas, veio abaixo de uma vez!
É evidente que o vigário aumentou as estatísticas dos mortos e desaparecidos, dessa forma sua alma subiu aos céus, conforme conta a lenda, onde ele clamou pelo guardião do Paraíso Celeste, que veio ao seu encontro. Foi então que o padre, furioso, descarregou sua frustração contra Deus, não entendendo o porquê d’Ele não o haver salvo da morte, embora ele tivesse demonstrado uma fé inconteste, ao mesmo tempo em que os seus rogos não foram ouvidos, pois que uma grande parcela da população havia perecido no desastre, incluindo-se crianças inocentes, idosos e enfermos. O guardião do Céu então declarou-lhe que o Todo-Poderoso tentou salvá-lo, primeiramente mandando alguém, com um bote, a quem ele recusou-se a ouvir; daí então, ao perceber sua teimosia, Ele mais uma vez mandou um helicóptero, com homens treinados em resgates perigosos, para buscá-lo incontinenti, mesmo contra a sua vontade!
Conclusão: o nosso livre arbítrio é soberano quando se trata do andamento do próprio destino, portanto o correto é aprendermos quais são as melhores escolhas para o nosso caminhar, nos mantendo sempre atentos aos sinais do Alto; o Criador é onisciente, portanto as suas ações são perfeitamente justas, no cumprimento das Suas leis universais, sempre de acordo com o mérito de cada um, por isso que nunca um inocente sofrerá mazelas injustas, mesmo que assim nos pareça, de acordo com o nosso ponto de vista estreito. A teimosia em nos mantermos presos aos nossos conceitos restritos e ultrapassados nos levará, com toda a certeza, à ruína física e espiritual, nos deixando alienados das chances de salvação, porque é esse o caminho da quebra de nossos possíveis méritos reais.