DEPOIMENTO A UM PAI PÓS-FILHOS
Circula pela sala o pai pós-filhos. Sua silhueta descarnada, quase imaterial ( se abstrairmos os ossos) passa ao largo da sala com a câmera, filma o painel de fotos na parede, chega à janela, filma a paineira... quase posso ver seus ossos, os ossos do homem pós-filhos a filmar a paineira da janela.
O pai pós-filhos me olha sem me ver; filma a blusa negra sobre a qual o colar com o trevo de quatro folhas, sob a qual os seios volumosos; sobe ao rosto que veste a máscara do momento; focaliza a boca a falar de coisas da pré e da pós-história da sua, dela, literatura ou de algo que o valha.
A mulher lê um poema e a câmera do homem pós-filhos volta a vagar pela sala, erra ao longo dos livros nas estantes, ao longo dos CDs, ao longo dos sofás, ao longo das almofadas, ao longo dos móveis, ao longo dos vasos com seus verdes que se espraiam alheios ao negro da blusa da mulher, alheios à silhueta descarnada do homem, alheios à morte anunciada no poema que também erra pela sala, alheios às máscaras pós-história, alheios à câmera do homem pós-filhos, à câmera com seu olho cego dentro da sala-cela: cilício.
O homem pós-filhos não aparece no filme. O homem pós-filhos faz aniversário daqui a três dias.