A SIMPATIA

     Arlete é daquelas pessoas que parecem equipadas com chip multiprocessador, o que caracterizou a terceira ou quarta geração de computadores. Dotada de inteligência extraordinária, consegue desenvolver várias tarefas simultaneamente. Bem, vão dizer que a maior parte das mulheres é assim – trabalho, casa, faculdade, filhos...
     Tudo bem.      Só que Arlete, além das coisas "corriqueiras" do dia a dia das mulheres, ainda utiliza os neurônios que certamente lhe sobram, para observar, entre outras, se o comportamento do cachorro sugere que está com vontade de comer osso ou ração; se o marido, finalmente, está concluindo alguma das trinta pendências que ainda restam da reforma da casa, e que dissera há um mês ser fácil resolver; se a empregada esguicha no pano de limpeza a quantidade correta de limpa-vidros. Isso mesmo, quantidade certa! Mais de duas pressões é desperdício.
     Ela é perfeccionista.
     Resmungar, nem pensar! Sua acuidade auditiva ultrapassa os cem por cento. É melhor segurar o tranco do que escutar seus quinze minutos de argumentação. Dizem que o conceito de globalização surgiu a partir da observação do comportamento de Arlete. Mesmo nas condições de execução das atividades de casa, seu cérebro está praticamente em estado de ócio, quase em hibernação.
     Para aliviar o desconforto da solidão cerebral, nada melhor do que um radinho de pilha, companheiro para tornar mais agradável a circulação pela casa, sintonizado num desses programas matinais em que os pontos altos são as receitas culinárias – jamais concretizadas –, previsões, premonições e a hora das simpatias.
     Ah... as simpatias!
     Numa das saídas, que de vez em quando, ela e o marido fazem ao shopping, ela sugeriu quebrar a rotina: almoçarem naquele restaurante simpático.
     O restaurante era razoável, mas o que o tornava simpático é que ela soube por um garçom que nenhum alimento era reaproveitado para o dia seguinte. O dono permitia que três ou quatro pessoas de comunidade pobre, da redondeza, retirassem das mesas as sobras de comida dos clientes, para alimentação de porcos. Da comida que sobrava nas panelas, eram preparadas algumas quentinhas para a comunidade.
     Há o sentimento humanitário exacerbado em Arlete. Acredita que o mundo poderia ser melhor se ela pudesse estar em todos os lugares em que pessoas precisassem de ajuda, por isso, convive com um complexo de culpa, mas já está em tratamento!
     Naquele dia, em razão da ida ao shopping, almoçaram bem mais tarde e confirmaram o que o garçom havia dito.      
     Lá estavam quatro homens com seus carrinhos de caixote de tomates e rodas de rolimã, ostentando os enfeites de sempre: escudo do Flamengo; imagem de São Jorge; fitas do Senhor do Bonfim;  um espelho,  com o escudo do Flamengo;  adaptado no lado esquerdo. Num dos carrinhos, um vira-lata preso a uma corda. Cada carrinho acomodava duas daquelas bombonas de plástico azul, com capacidade para quarenta litros.
     O atestado de pobreza daquela gente via-se estampado nas roupas que, embora razoavelmente limpas, estavam deterioradas pelo uso.
     Arlete, na quarta seção do tratamento, fez apenas um aceno com a cabeça e um sorriso abraço. Nem tentou saber como poderia ajudá-los. Como se fosse eco, foi correspondida com cinco sorrisos com pelo menos uns doze dentes inteiros e três cacos. No colo de um deles, uma criança.
     Sendo Arlete meio mística, é muito provável que aqueles sorrisos, em vez de parecerem simples manifestação de humanidade e civilidade, na realidade fosse a tradução gestual de uma comunicação telepática em que Arlete preparava a surpresa que um deles iria encontrar no seu prato.      
     De fato, o marido nunca tinha visto sobrar tanta comida no prato de Arlete.
     Logo, nhoque, que ela adora!
     O marido hipnotizado pelos “gols da rodada”, que passava na televisão, aguardava rever a goleada de cinco a um que seu time aplicou no adversário.
     De repente, seu transe foi bruscamente interrompido por uma exclamação de Arlete, que soou inadequada, dado os decibéis emitidos, o que é raro no seu doce falar.
     – É hoje!
     – Que foi Arlete? Que susto!
     – É hoje! É dia vinte e nove! – já dentro do conceito do “nada acontece por acaso”.
     Na condição de idoso, o marido pensou logo que se tratava do dia de sexo.
     Nada disso. No espírito dos programas matinais, Arlete sapecou:
     – Hoje é dia da simpatia do nhoque da sorte!      Até no cardápio, o prato está em destaque!
     – Sim, Arlete e daí?
     – Temos que colocar uma nota debaixo do prato.
     – Arlete, você sabe muito bem que nos dias de hoje não se pode andar com dinheiro vivo no bolso. Pode ser cartão ouro? Cheque? Se puder, e desde que não seja para descontar, faço um com valor bem alto.
     – Não, não pode! Tem que ser em espécie!               –  Espera! Tenho uma nota na bolsa. É a da simpatia para nunca faltar dinheiro.
     O marido nunca vira dinheiro em sua bolsa, mas ela sacou de um compartimento secreto uma nota de cem dólares, – como se o ladrão não levasse o compartimento secreto junto.
     Cem dólares? A primeira que ele tinha visto!      Nessa matéria Arlete é ousada. O marido, já contaminado pelo seu entusiasmo e um pouco de olho grande, reclamou:
     – E eu, Arlete?
     – Espera, espera... Pronto! Achei uma nota dobradinha aqui no fundo. Coloca debaixo do teu prato.
     – Um real Arlete?
     – Só achei essa. Quem manda andar duro!
     – Arlete, como funciona esta simpatia do nhoque?
     – É que com esta simpatia, um sistema de energia positiva, que se origina no lado direito do nosso cérebro, começa a se movimentar em espiral, e se conecta às energias do Universo que, sob essa influência, conspira no sentido de...
     – Está bom, Arlete, esta bom... Já entendi.            Vamos comer que o nhoque vai esfriar... (Com a nota de um real, a origem da fortuna dele deverá ser o INSS!)
     Enquanto comiam, o marido observava o semblante de Arlete. Tentava adivinhar se o ar de felicidade era pelo sabor do nhoque ou pela expectativa do tamanho da fortuna que estava a caminho. Afinal, o investimento foi de cem dólares. Eram cem dólares na jogada!
     Em casa, quando deitaram, outra exclamação:
     – Meu Deus!
     – E agora, Arlete, o que é? – já imaginando se tratar de coincidência de datas: dia de nhoque e de sexo.
     – A nota de cem dólares! Esqueci debaixo do prato!
     No dia seguinte voltaram ao restaurante no mesmo horário, com a esperança de reaver os cem dólares. Lá estavam os mesmos homens, seus carrinhos e a criança no colo de um deles aguardando autorização para entrarem.
     A diferença é que agora, a criança segurava uma boneca enorme e, assim como aquele que a trazia no colo, vestia roupas novas, e o vira-lata estava preso ao carrinho por uma coleira de couro.
     Ah! O escudo do Flamengo era bem maior e circundado por material prateado e brilhoso no formato de um coração.
     Ficaram sabendo que no dia anterior, o bondoso e também místico dono do restaurante resolveu, além de preparar as quentinhas, servir-lhes, nas mesas, uma porção do nhoque da sorte.
     Rindo muito, voltaram para casa convencidos de que a simpatia do nhoque da sorte funciona mesmo.
     Pelo menos para dono de carrinho de caixote de tomates!