A CIÊNCIA DO BELO E DO FEIO

Não posso mais freqüentar a Igreja. O pastor disse que sou um caso perdido. Não há beleza suficiente em mim para eu alcançar o porvir. Não adianta procurar outra Igreja e enfrentar todo o processo de rejuvenescimento. Seriam inúteis a técnicas de modelagem facial, os reparos, ao apliques na pele. Não há salvação para mim. Como gratidão à minha devoção, o pastor deixou que eu ficasse com os cremes e as loções. Desconfio que o pastor irá lograr um galardão maior por causa deste pequeno ato de generosidade. Irei para o inferno mas serei eternamente grato a ele por isso.

- É a sua parte no Reino de Deus!

A minha parte no Reino. Não culpo a Deus. Culpo os administradores. Culpo a Eva. Por que ela tinha que beber aquele maldito suco de maçã? Se ela estivesse de regime e não houvesse aquele pequeno mal entendido no Jardim do Éden não teríamos que pagar este alto preço. A árvore do belo e do feio. Maldita seja a sua semente. Que adubo a alimentou? Arrancados para sempre sejam.

Voltemos à minha triste história. Ela precisa ser contada. Devotado obreiro da Casa do Senhor, eu dei o melhor de mim. Fiz duas plásticas faciais, uma lipoaspiração, um aplique nos cabelos e tornei-me belo, merecedor com folga do Reino do Céu. Acho que meus pontos dariam para passar junto comigo até um mendigo. Como desejei que a carruagem passasse enquanto eu era Apollo! Prossigamos. O esforçado trabalhador de Deus encaminhou diversos corpos para serem restaurados. Marielza é meu maior trunfo. Era quase uma expiação aquela mulher. Após correção das narinas, redução mamária, retirada de gordura localizada, clareamento facial outros milagres, ela tornou-se digna de ir para Sião. Ela irá. Obra de Deus, mas se não fosse esforço para dar uns reparos, Marielza seria presa fácil para Satã. Talvez Marielza seria a recepcionista perfeita para ele. De que adianta o homem ganhar um mundo inteiro de Marielzas e perder o seu próprio corpo?

Eu fracassei. Logo agora que a salvação é tão fácil. Antes, no período A.T., era o tempo da predestinação. As criaturas já nasciam belas ou feias, com o destino eterno já traçado. Em D.T., qualquer um pode alcançar a salvação. Mesmo os feios mórbidos. Com uma pequena soma de dinheiro aliada à fé, tudo se resolve. Há fôrmas para todos os modelos. O inferno ficou uma utopia. Mas eu falhei e mereço um ministério lá.

Antes de pensar na perda irreparável do céu, tenho que sofrer com ausência do ambiente que a Igreja me proporcionava. Como vou sentir falta das sessões de ginástica, dos abdominais coletivos, da hora da máscara facial, ah! Meus dias não serão mais os mesmos. Terei que contentar-me com a convivência das pessoas feias. Banguelas cantarão os parabéns no dia do meu aniversário. Tocarei pagode com um grupo de narigudos e obesos. Como vou sofrer! Mas esse sofrimento anima-me. É uma forma de adaptação ao inferno. Estarei mais conformado quando lá chegar. Talvez eu cante no coral.

Está certo que há outras religiões, mas para que mentir? Não tenho como enganar a minha fé. Há seitas de negros que dizem que a beleza verdadeira é a deles. Uma tia minha está frequentando uma Igreja que prega a gordura como regra de vida. Segundo a doutrina deles, os magros não herdarão as bodas do Cordeiro. Mas a Bíblia diz nos últimos tempos apareceriam falsas doutrinas, falsos profetas.

Com o estabelecimento do tempo da Tecnologia, só há um pecado que anula para sempre as minhas chances: a queimadura do rosto. Safei-me de todos os outros, mas fui ceder logo nesse ponto. Desconfio que a criação do fogo não foi uma obra feliz de Deus. É muita tentação ter que conviver com ele e não se queimar nunca. Principalmente na minha profissão. Seria heresia imaginar o que vou agora, mas já que está tudo perdido mesmo... Se houvesse outro método de salvação talvez fosse mais justo. Por ser bom, por exemplo. Mas acredito que estou apenas aumentando a minha pena pensando assim. Quando recebi o meu sinal da besta no rosto, não salvei uma criança do fogo. Apenas cumpri bem o serviço para o qual eu sou bem pago. Não há espiritualidade alguma nisso. Mas acredito não ser absurdo sonhar com outra ciência nesta altura da vida de um homem condenado.

O meu único consolo é que agora posso ser feio sem sofrer com isso. Posso me empanturrar de empadinhas, tomar todos os sorvetes da Terra, comer churrasco sem culpa. Nada de agulhas ou fórmulas terapêuticas. Vou ceder a todos os apelos da carne, antes que os vermes a devorem. Serei gordo, feio e sentenciado.

Talvez para matar o tempo, eu abra uma confeitaria. Sim, e misturarei elementos deformadores nas rosquinhas. Preciso de companhia.

Anderson Alcântara
Enviado por Anderson Alcântara em 14/01/2010
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