CLARA

A última vez que vi Clara ela conservava ainda bem vivos seus olhos. Um dia um rapaz lhe disse que com aquele par de olhos conquistaria todo o mundo. Não sei se ele estava exagerando ou disse apenas para impressionar Clara. O certo é que diante dos olhos de Clara qualquer mortal sente-se injustiçado e privilegiado ao mesmo tempo. Injustiçado porque nela a natureza ocupou-se um pouco mais e operou um singelo milagre. Mas, qualquer um sentiria-se também privilegiado. Olhar dentro daqueles olhos, nos faz viajar por um mundo, onde fundem-se Picassos e Almodóvares, numa decoração construída apenas para contemplação.

Clara nunca dirigiu uma única palavra à minha pessoa. Não a culpo por isso. Talvez eu nunca tenha buscado esse encontro. Sempre achei mais confortável ter Clara assim, ao meu alcance, sem pôr-lhe qualquer espécie de algema. Preferi não travar nenhum contato além do visual. A verdade é que nunca senti-me pronto o suficiente para estar com Clara num mesmo mundo. O mundo dela é grande e complexo demais para mim. Entrar nele e me perder nunca esteve nos meus planos. Clara é a única que pode me guiar, mas falta-me a coragem para desejar isso com mais força.

Um dia, há dois anos, a segui de longe. Clara vinha da escola e estava acompanhada por uma garota da sua idade e por um rapaz. O rapaz parceria gostar de estar ali junto dela mais que tudo no mundo. Senti isso mesmo de longe. Estranho é que não fiquei enciumado. Admirar Clara e sentir ciúmes ao mesmo tempo são duas coisas incompatíveis. Amar Clara exige devoção e indiferença. Clara deve zombar de todos os rapazes que se aproximam dela, com intenções de impressioná-la. Ela parece se divertir muito com isso. Clara é assim: maquina secretamente contra a humanidade masculina. Deve sonhar com um mundo habitado só por mulheres. Um mundo em que ela seria a rainha. Um mundo justo, na visão de Clara.

Eu nem sei com que mundo sonho. Talvez não sonhe com mundo algum. Ou, meu mundo se resume nos desejos, nas manias de Clara. Talvez, eu não tenha direito de sonhar com um mundo ao meu jeito. Vai ver que nasci para ser o anjo de Clara. Vigiar Clara à distância, fazendo das minhas vontades e desejos apenas um contraponto à vida de Clara. Quem sabe a minha sina seja sacrificar para salvar o mundo, no meu caso, o Planeta Clara.

No cinema, fiquei escondido na hora de pegar à fila. Voltei da porta três sábados seguidos. Não reclamei. Minha paciência nunca censurava Clara. No quarto sábado, lá estava ela, deslumbrante, num vestido vermelho. Usava um penteado diferente. Tem o dom de ser diferente num mundo de iguais. Esperei que ela entrasse na fila. Mais quatro pessoas entraram. Aí só então entrei. Não queria me arriscar a ficar tão perto dela. Clara me causa arrepios e a sua presença física, mas a uma certa distância.

Seria incapaz de sentir a sua respiração no meu braço. Uma fila me faria correr esse risco. Eu não sou um homem de correr riscos. Clara sentou-se na quarta fila. Eu encontrei um lugar quase atrás dela, na quinta fila. Na tela estava passando “Carne Trêmula”, do cineasta espanhol Pedro Almodóvar. Percebi que Clara estava vidrada no filme. Passei a concentrar-me também na tela. Na trama, o jovem Victor procurava ficar perto do amor da sua vida. Era um rapaz mal amado e que vivia uma solidão por todos os ângulos. Senti-me nele e me achei ainda mais miserável. Mais desamparado ainda. Ao menos o seu diretor e responsável por sua vida não lhe privou do belo. Victor habita um mundo em que as pessoas parecem possuir duas almas para se equilibrar dentro de um corpo e as cores que compõem a paisagem da sua vida, são de longe, um Éden, comparadas às da minha Bagdá. Clara parece ter se apaixonado, não pelo filme, mas por Victor. Não senti ciúme. Senti inveja. Saí antes da fita terminar. E chorei, amparado pela beleza e por uma necessidade que a alma me impõe há meses. Derramei as primeiras lágrimas que eu me lembre. Em toda a vida não passei de um deserto.

Decidi nunca conquistar Clara. Estamos condenados a nunca nos encontrar. A mim, cabe o sofrimento nesta tarefa. A ela, a indiferença, como alguém que por não ter nascido, não sente nada. Nem mesmo o devorar do vazio. Clara tem a sua vida. Sonha em ser atriz de teatro. Fiquei sabendo e nem sei por quem. Torço para que consiga. Com sinceridade e fervor, tecerei orações para que ela consiga realizar seu sonho. Quanto a mim, meu sonho é estar na primeira fila do teatro, puxando as palmas e enxugando as lágrimas. Até lá, acredito aprenderei a chorar com alguma classe.

Um dia, Clara beijou Renato. Na boca. Espero que Renato saiba beijar bem e que não magoe Clara. Misturei diversos sentimentos na hora. Não sei se reagi como um amante traído ou como um pai ciumento. Explico: não sou amante nem pai de Clara. Acalmem-se. É que ela é o único ser pelo qual sinto algo em todo o mundo. Ela é a minha única família.

Minha vida agora que Clara desapareceu não faz mais sentido. O pior é que nem sei realmente se fugiu ou se foi levada por alguém. A única coisa que ainda embala a minha existência é um fiapo de esperança. Sei que ela está em algum lugar neste mundo. Sairei e a encontrarei. Não pode estar em outro país. A encontrarei. Farei disso a busca da minha vida. Nesta ou na outra vida.

Anderson Alcântara
Enviado por Anderson Alcântara em 08/01/2010
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