BATINAS E BRINQUEDOS

Hoje estou testando um novo aparelho de barbear. Nunca fui um especialista no assunto. Mas agora preciso prestar mais atenção nestes detalhes. Alguns garotos reclamaram que com a barba eu ficava mais parecido com o pai deles. Não quero ser parecido com o pai de nenhum membro do meu harém. Aparelho de barbear e loções novos. Espero que o número 26 agrade. Ele é um garotinho muito exigente. Um pequeno tirano que se acha no direito de fazer exigências. Ainda bem que dentro de mais um ano, no máximo, seu prazo de validade estará vencido. Não precisarei mais dele.

Conheci o número 26 num dia de chuva. Ele passava, todo molhado, deixando à mostra o seu já avantajado e másculo corpinho. Parecia um daqueles maquinistas de histórias infantis. Com 11 anos já demonstrava o vigor de um verdadeiro macho. Pediu para se abrigar da chuva na Igreja.

Quem sou eu para impedir alguém de se abrigar na Casa do Senhor? Entre meu filho, aqui sou apenas o mordomo.

Mordomo! Ali ele entrou na minha vida. Só lamento ter que deixá-lo em breve. Acho que ele não vai entender, mas o que posso fazer? O meu lema é deixar vir a mim as criancinhas. Mas que continuem brincando na minha hospitalidade para sempre, em forma de meninos. A minha Terra do Nunca é eternamente aberta a essas criaturas de Deus, puras e longânimes.

O número 26 prometeu voltar no outro dia. Afinal, Padre Zico prometera aulas de violão grátis. Muito generoso este Padre Zico. Deus foi muito benevolente em conceder-me um coração assim tão hospitaleiro, o dom de abrigar de tantas chuvas crianças medrosas e sem ter para onde ir. Sinto-me um Peter Pan com hormônios.

Voltemos ao número 26. Um amor este número 26. Talvez o melhor que tive em minhas mãos desde o número 14, que tocava flauta e tinha uma fome sexual ensandecida. Mesmo após copulá-lo, ficava mendigando migalhas, me impedindo de fazer minhas rezas. Tive que ralhar com ele diversas vezes, pois mesmo o amando e o venerando não poderia dar-lhe o direito de interromper minha intimidade com Jesus. Tinha por hábito preparar meus sermões após uma boa batalha sexual. Depois de resolver-me com o demônio da carne, meu coração voltava-se sereno para as coisas celestiais. Todos os outros meninos sabiam respeitar isso. O número 14 se colocava acima de Jesus. Sentia ciúmes por eu devotar o melhor de mim ao Filho de Deus. Não concebia esse meu apego, minha fé. Um tirano.

- Se não deixar essa Bíblia aí agora e vir aqui cuidar de mim, vou contar para todo mundo!

- Faça isso e irá amargar no fogo do inferno. Acha que pode competir com Jesus, moleque?

- Se me chamar de moleque de novo, saio por aquela porta e revelo nosso segredo.

Ele sabia como me dominar. Soltei a Bíblia, o crucifixo, a caneta, a fé, a moral e largaria até de Jesus naquele momento. O safado sabia como ter-me. Lancei-me sobre ele, acariciando-lhe os cabelos cacheados e beijando-lhe fortemente. Prefiro não ultrapassar neste relato a linha de intimidade que era só nossa. Posso apenas dizer que nunca fui tão feliz como naquela noite. Senti-me mais leve como se tivesse vomitado alguns quilos de hóstia com aquele coito. E eu que conhecia já vários corpos, sabia definir a textura de cada um. Poderia catalogar uma creche deles.

Sofro com as recordações do número 14. Tanto que fui obrigado a fazer uma pausa no meu presente, no meu número 26, para celebrar o meu amor por ele. Mas acabou. Acho que a minha missão com ele está completa. Hoje o número 14 é seminarista e logo será um padre como eu. Talvez um concorrente, talvez um colega. Ainda não sei que rumo irá tomar. Desejo não mais encontrá-lo. Fui e ainda sou apaixonado pelo menino. Agora, ele já é homem, estudioso, senhor de si, não me interessa. Voltemos ao número 26. hoje irei encontrá-lo em uma casa abandonada. Será um encontro de risco, mas quem disse que só porque sou um homem de Deus não tenho direito a aventuras. O céu nasce para todos. E o inferno, o inferno são os outros que ainda irei conseguir.

O número 26 continuou me visitando, me visitando. Era um menino dado às visitas. E eu como cavalheiro, tinha por obrigação fazer meus convidados sentirem-se em casa. Muito hospitaleiro este Padre Zico! Com o número 26 foi fácil. Lancei mão de todo o conhecimento e experiência adquiridos ao longo da minha carreira amorosa. Não poderia perder essa presa. Olhos verdes, corpo atlético e um garoto sem posses, que não conseguia ser senhor de seus sonhos. Quando o presenteei com um violão, acho que foi o dia mais feliz de sua vida. Ficou tão feliz que se entregou por completo para mim. Até o dia do violão, tinha que me contentar com seus carinhos secundários. Entregou-se inteiro para mim, contou-me segredos só seus e enquanto eu me refazia, tocou “Amigos para sempre” para mim em seu novo violão. Ali estávamos todos felizes. Ele talvez mais porque tinha seus dois brinquedos favoritos: o violão e a mim. Imagino que não nessa ordem. Quanto a mim, o amo, mas sei que um dia ele irá ter passado por minha vida. Será um número distante e perdido. Certamente quando eu estiver me barbeando para encontrar-me com o número 100, estarei lembrando com carinho do número 14 e do número 26. e talvez do número 57 ou número 61. Não sei ainda. O futuro a Deus pertence.

Paralelamente a ele, vou cuidando também da felicidade do número 25. Coisa difícil é decidir por dois números quando os dois entram juntos na nossa vida. Como não quero parecer injusto e que faço acepção de pessoas, decido catalogar por quando conheço o menino. Por exemplo, vi o número 26 primeiro, mas comecei a relação com o número 25 primeiro. Só que meu método é motivacional. Quando fixo em um garoto e decido conquistá-lo, já carimbo meu número nele. Caso não consiga, tarefa difícil, dadas as minhas qualidades, apago aquele número e rebaixo o próximo. Isso não é uma tarefa muito agradável. Dá-me uma certa crise de identidade. Quando conheci o número 11, o tratei como a um filho, mas a sua família teve que se mudar antes que eu conseguisse me apoderar de seu corpo. Como já tinha os números 12 e 13, tive que rebaixá-los. Ficaram sendo os números 11 e 12. Além de ser desleal para com eles, rebaixá-los ao invés de promovê-los, isso deixa-me angustiado, faz sentir-me um derrotado. Minha mãe disse que não me queria um derrotado. Ela queria que eu fosse um homem admirado pelas multidões. Irei atender a minha velha mãe. Só que a minha multidão é um exército de meninos, meus pequenos soldadinhos de chumbo com armas de plástico na mão.

Caso interessante se passou com o número 8. Detestava balas de hortelã e responder alguma coisa duas vezes. Só que o danado do moleque tinha um faro jornalístico. Vivia perguntando as coisas.

- Padre Zico, o que estamos fazendo não é pecado?

Muito sábio, Padre Zico o consolava com voz mansa e suave.

- Acha que não foi Deus que armou isso aqui, colocou você no meu caminho? O amor não tem disso não, não tem idade, cor, sexo, amor é amor, ora.

O número 8 não quedava-se. Parecia um emissário de Lúcifer a tentar a minha fé, o meu amor, a minha virilidade.

- Padre Zico, por que temos que esconder o nosso caso? Por que ninguém pode saber? Por que tenho que mentir quando venho para cá e o que faço? Mentir não é pecado?

Mais.

- Sexo não é pecado? Será que iremos para o céu?

O número 8 é um ponto de interrogação. Não se comentava apenas com o amor que eu lhe dava e ainda reclamava que doía, quando eu me empolgava. Acho que por ser um menino muito curioso e perguntador irá amargar uma eternidade no inferno. Lamento mas o céu não foi feito para todos. Deus não quer uma super população lá. Se quisesse não teria feito o inferno. Deixamos as coisas de Deus para momento mais oportuno e voltemos ao número 26. Melhor, façamos uma regressão. Psicanálise agora. Voltemos ao intervalo entre o número 5 e o número 6. O meu período inter-bíblico. Vivi um ano sabático, um jejum de garotinhos e da fé. Senti-me abandonado por Jesus, mesmo depois de alguns anos de trabalho. Mas acho que chegamos a um acordo. O detestável Bispo, após a denuncia de uma velha senhora, que havia acusado a minha inocente pessoa de molestar seu neto, resolveu afastar-me das minhas atividades paroquianas. Fiquei como uma pastor afastado de seu aprisco. O que me doía em todo esse tempo era a possibilidade de chegar algum lobo e devorar as minhas ovelhas. Como temia isso! Acho que sou um pastor amoroso, o que dá a vida pelas ovelhas. Fiz um acordo com Jesus. Eu voltaria a trabalhar para Ele e Ele retiraria de mim essa vocação, esses desejos, me tornasse psicologicamente homem, um varão casto e bondoso. Acordo feito. Acho que ficaria mal para Jesus um padre desempregado. Somos uma classe imune ao desemprego. Mas apossei-me da batina, resolvi investir na continuidade da minha coleção de pequenos anjinhos por questão religiosa tenho que parar no número 665, caso meu vigor permita-me chegar tão longe. Não seria profano de deitar-me com o número 666. Ainda bem que a besta não escolheu o nº 30 porque senão eu estaria a passos largos do inferno.

Tenho que me aprontar para o encontro. Como já disse, o número 26 é exigente e está melhorando sua performance sexual. Desconfio que ande tomando aulas fora da Igreja. Tenho que afastá-los, aniquilá-los, reduzi-los a pó. Não posso permitir que tirem a minha fortaleza, que se apoderem de meus brinquedos.

O número 26 tem um amigo interessante, tímido e recatado, que sonha em ser coroinha. Acho que em breve será o senhor número 27. O ideal é que os números não se conheçam. Números são ciumentos. Serei um homem mais feliz, mais maduro. Após a tarde de hoje com o número 26, regada a amor e lições escolares, irei traçar um estudo sobre as preferências do número 27. Em breve, serei senhor de sua alma e de seu corpo. Será um bom coroinha. Sinto que ele tem vocação. E a minha missão é encaminhar essas criaturas em sua vocação. Voltemos à barba.

Anderson Alcântara
Enviado por Anderson Alcântara em 07/01/2010
Código do texto: T2016618