O Valor dos Sentimentos
2037 – Califórnia
San Diego
Hoje, 24 de Dezembro, véspera de Natal, tento escrever algumas palavras. Estou inquieto, não consigo dormir e já são 23hrs e 37mins. Deve parecer estranho o fato de estar escrevendo em tal momento, pois estou passando a véspera sozinho. Mas não se preocupe, foi por escolha minha; amanhã irei visitar meus familiares.
Na verdade, venho por meio deste diário tentar descrever em humildes palavras um acontecimento incrível que ocorreu esta tarde.
Trabalho no Departamento Policial há 20 anos.
Acompanhei o desenvolvimento da mecatrônica, o surgimento de máquinas surpreendentes e aprendi as três principais leis da robótica.
Nesse tempo surgiram os ARP’s (Ajudantes Robóticos Pessoais). Estes mesmos se desenvolveram tremendamente em pouco tempo. Começaram à assumir trabalhos como Garçons, secretárias de Departamentos Policiais, “Personal Trainers”, entre outros.
Mas nessa manhã recebi um caso que mudaria meu conceito sobre a sociedade, sobre os sentimentos. Um caso aparentemente comum de “Violação da Lei Robótica da Proteção Humana”: Um ARP havia ferido alguns civis em uma lanchonete à beira de uma rodovia.
Coloquei a jaqueta e segui pela rodovia. Não levei o carro, a lanchonete não era muito longe daqui.
Logo me deparei com uma enorme lanchonete de metal cercada por policiais, com os vidros quebrados e os “neons” falhando.
- Detetive! Que bom que está aqui! – Dizia o patrulheiro da rodoviária; Uma frase típica.
Apresentou-me o caso, dizendo que havia uma “Deficiência Maquinaria” com aquele ARP, que por um acaso havia um refém e estava fora do campo de visão.
Entrei pela imensa porta (perfurada levemente). Avistei a “Máquina Assassina” sentada em um dos bancos da lanchonete, segurando uma lata de óleo em umas das mãos, e uma arma de fogo na outra.
Pediu-me sutilmente que me sentasse.
- Andei analisando sua sociedade detetive...
- E o que achou dela? – Respondi
- Achei ela um tanto estranha...
- Estranha? Onde aprendeu sobre isso?
- Não coloquei outro “chip de vocabulário”, se é o que quer saber.
Um breve silêncio que durou poucos segundos.
- E qual o motivo de ter achado minha sociedade “estranha”?
- Seus sentimentos detetive... – Nesse momento me assustei, aquele simples caso estava se tornando único.
- Sentimentos? O que uma máquina sabe sobre isso?
- Não muito. Mas sei que muitos desses sentimentos são inúteis
- Inúteis? Como quais?
- O Amor, por exemplo.
- Amor? Mas ele pode proporcionar uma grande amizade, que deixa, nós humanos...
- Animados. – Ele Interrompeu – Sim. É uma grande motivação quando correspondido. Mas e quando não é correspondido?
- Proporciona dor.
- Exatamente detetive. Dor é um sentimento inútil também. Tudo o que ele proporciona é mais dor, falta de motivação e, dependendo da gravidade, até a morte.
Calei-me novamente por alguns segundos. Eram argumentos fortes, principalmente para uma máquina.
- Mas como uma máquina sabe sobre...
- Sentimentos? Isso não vem ao caso – Interrompeu-me novamente – Não pode responder à esses argumentos detetive? – Ele parecia ler minha mente...
- Acho que posso sim. – Ele me observou atentamente – Um amor correspondido traz uma alegria imensa e dura por muito tempo...
- Mas o que acontece se uma das pessoas... Sabe? Uma das que estão se “amando”... O que acontece se uma delas se apaixona por outra pessoa ou simplesmente morre?
- Vem a tristeza novamente, ou até a ira, no caso da traição.
- Exato!
- Mas o período de tristeza é geralmente menor...
- Ou não. Se a morte “acontecer” no começo do relacionamento. E além do mais a tristeza sempre aparenta doer mais. A tristeza tira a razão dos seres humanos...
- Mas... – Tentei replicar; sem sucesso algum.
- Sem argumentos agora detetive?
“Engoli o seco” (como dizemos) e respondi: “Sim”. Ele interagiu tristemente (outra novidade para os ARP’s). Logo perguntei o que era aquele suspiro que havia soltado.
- Sinceramente Detetive... Achei que você pudesse me explicar...
- Eu acho que... – Tentei aceitar outra possibilidade, mas não encontrei – Acho que isso é tristeza... – Ele pareceu pensativo
- Mas como eu... – consertou – Como uma máquina pode sentir?
- Talvez não esteja sentindo... Talvez...
- Sim. Eu já sei o que irá falar. E creio que está bem perto.
- Perto de que?
- Detetive... Estudei por muito tempo sobre sentimentos, esperei que um humano pudesse me esclarecer dúvidas. Máquinas as vezes se questionam. Talvez seus objetivos se baseiem em adquirir informações. Mas... Se nem mesmo os humanos sabem responder sobre algo próprio deles... – Pareceu sem palavras.
Calamos-nos por um tempo. Alguns minutos talvez. E “ele” voltou a falar.
- Creio que seja algo além da “alçada” de nós, ARP’s. Ou de qualquer outra máquina. – Finalizou ele.
Assim que terminou de falar, soltou a arma. Afastou-se de um refém (que se sentava ao seu lado) e foi em direção à porta. Foi baleado. Os policiais atiraram como loucos.
Fui dispensado, não havia mais nada pra fazer além do boletim de ocorrência. Cheguei pensativo.
Desde então não sei como aquela máquina soube daquilo. Mas creio que estava certa. E ainda creio que o entendimento desse assunto está “fora da alçada” de todos; inclusive da nossa, criadores de tão “estranhos” sentimentos.