A cantatriz
Ele estava sentado no chão do box contemplando o cantar daquela grande e onipresente mulher, que soltava sua alma boca afora, debaixo do chuveiro frio. Ele até gostava de água fria, mas só se fosse mar, rio, cachoeira, chuva – sobretudo chuva –, etc. Chuveiro frio ele não curtia nem um pouco: o que possibilitou ao homem ficar separado por alguns instantes do corpo daquela magnética mulher, como espectador, no canto do mínimo quadrado de azulejos. Ali, naquele banheiro de hotel, ela cantava “se todos fossem no mundo iguais a você”. Era uma confissão máxima de um passado recente. Uma entrega máxima de alma viva em água gelada. A voz era linda. Aliás, toda a mulher era linda. Na verdade tudo naquele dia azul era lindo. Como se os designers gráficos da Matrix tivessem desenhado um dia perfeito para um casal de almas sensíveis e carentes. Como se um prêmio por serem aqueles, homem e mulher, merecedores de alguns momentos de plenitude. E, se foi o caso, se tudo foi mesmo design, vou te contar... que trabalhão esses desenhistas devem ter tido pra desenhar um dia como o que se viu: aquele céu, aquelas ruas de pedra, aquele chafariz, aquela igreja, aquele beijo dentro da igreja... quem poderia fazer melhor? Esses caras são os maiores artistas de todos os tempos. Porque eles são polivalentes. Eles são desenhistas, são engenheiros, são músicos – se bem que demoraram um pouco para ajustar o tom de voz da mulher na hora da sua bela cantoria no chuveiro –, são poetas, enfim. Mas há um mistério nisso tudo. O que era verdade e o que era desenho? A mulher: era verdade ou desenho? O homem? Eu, particularmente, começo a achar que eles eram de verdade, e, apenas a paisagem fora desenhada. Bem. Sei lá. Às vezes acho era tudo verdade. Se assim houver ocorrido, a Matrix não teria sido a forjadora do encontro daquele casal, com todo aquele entorno, mas sim, ao avesso do que se pensava, o lugar de seus cotidianos de plástico imortal. Imortal, com belezas e tal, porém de plástico. Ah, a confusa fronteira entre o plástico e a vida.
De plástico ou não, de éter ou não, de computador ou não, a cantatriz continuou a soltar sua alma boca afora, sem perdê-la de si, por dezenas e dezenas de anos, e até por milhões, ad infinitum, através dos recursos tecnológicos disponibilizados da Terra do Sempre, pelos maravilhosos designers, videomakers do bem e operários do aperfeiçoamento da vida. Estes, de um tipo de gente muito especial e rara que sempre existiu e sempre existirá. Eles moram na Terra do Sempre, que é um lugar bem mais próximo de nós do que possamos inferir. De vez em quando esses caras querem que nos assemelhemos a eles em aparência física e psicológica. É nesses momentos que nos fazemos anjos.
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