No Íntimo 

O personagem e o autor desse texto são naturalmente ficcionais. No entanto, o leitor com o olhar um pouco mais perspicaz poderá perceber que a representação deste ser que se comunicará, a partir de agora, através de pensamentos, notas, desabafos, histórias e reminiscências de sua vida de maneira ácida, ferrenha, extremamente crua e por vezes ignóbia, é a parcela maior do que há em nossa sociedade contemporânea, desde que consideremos o quão camuflado esteja tal comportamento dentro daqueles que intimamente assim se apresentam e em que condições de vida tenha sido formada uma pessoa que chegue a tal nível de insensatez.

 

 

CAPÍTULO I

 

DA INSUSTENTÁVEL DISCONCORDÂNCIA

 

Eu sou um produto. E não tenho qualquer valor considerável. Sou uma espécie de mártir dessa incompreensível máquina chamada vida que, não obstante, não quer dizer nada. Eu fui um homem doente, por toda vida, apanhei toda espécie de doenças. Bronquite, hepatite, rinite, doenças venéreas e por fim um câncer. Este último eu venci. Mas ainda o tenho dentro de mim. Não quero confundir a cabeça do estimado leitor, mas é isto mesmo o que eu quero dizer. Um câncer, caro amigo, não é apenas um crescimento celular desordenado. Um câncer é tudo aquilo de ruim que silenciosamente se guarda. E o que quero dizer com isso? Que todos temos alguma espécie de câncer dentro de nós.

 

O impulsivo mecanismo de autodefesa daqueles que usam máscaras para esconder a sua verdadeira essência nesse momento deve distanciá-los de tal afirmativa. (E não se assuste se eu disser que você se esconde. Todos nos escondemos de alguma forma.) Contudo, é preciso que tal manifestação seja expulsa de você nesse exato momento. Que seja completamente varrida do seu íntimo como se fazem aos indesejáveis insetos que ousam alojar-se em suas belas casas. Não obstante, afirmo, não somos melhores que eles em nada.

 

Eu não estou aqui para mentir, nem fingir para o senhor ou a senhora que lê essas linhas e se enoja. Antes de tudo, quero afirmar que não sou uma farsa. Não sou um personagem, nem um escritor que mede palavras pomposas. Eu sou o que sou. Sou produto do seu meio e estou, assim como você, nessa incompreensível máquina a que chamamos de “vida” e para a qual eu honestamente desconsidero e objeto possuir tal nomenclatura. Apesar de ter-me safado inúmeras vezes de enrolar-me no eterno negro manto do esquecimento e de ter lutado com todas as minhas forças para vencer tais e tais riscos de morte (e isso por vezes me põe no lugar de herói) eu devo confessar que não o fiz por amor à vida. Mas por puro ódio! O mundo não poderia livrar-se assim de mim de maneira tão fácil. Eu preciso continuar existindo para mostrar o quanto ele fede. Sim, a vida é podre e podres somos nós.

 

Alguns de vocês (que não sei exatamente quem são) devem levantar hipóteses sobre a minha sanidade mental nesse momento, ou já devem estar incômodos em seus lugares querendo largar-me nesse mesmo instante e ver ou fazer algo mais interessante. Eu os instigo: Façam. Não me incomodo com isso. Enquanto vos falo eu mesmo fumo meu cigarro sem qualquer vergonha disso ou restirção. Ah, e quem é o próximo a achar isso um absurdo? Cigarro dá câncer! E eu sei disso! Existem mais de quatro mil substâncias tóxicas nessa porcaria! Mas eu só fumo dois maços... por dia. O cigarro é uma droga que mata devagar. Mas se eu estivesse mesmo com pressa de morrer, tentaria o suicídio. Contudo, livrar o mundo de mim de tal maneira seria um absurdo! Eu quero dar trabalho aos médicos. Tenho que ficar em cima de uma cama e fazer com que limpem os meus restos fecais que hão de feder muito e embrulhar o estômago de quem me limpa. Afinal de contas, que graça teria se cheirassem bem? Seria isso uma grande mentira.

 

A excreção nada mais é que a verdadeira identidade de todos nós. E em nossos banheiros é que somos verdadeiramente nós, desnudos, sentindo o nosso próprio cheiro e vendo como verdadeiramente somos, sem nada que nos torne um pouco melhor. Nós somos como os cães, e os cães não urinam para demarcar território, isso é uma mentira. É através da urina que eles se comunicam. Que sabem se um ou outro está doente ou não; é através disso que sabem quantos cães vivem em um determinado território. Mas eles não demarcam nada, posto que pouco se interessam pela posse das coisas nesse mundo. Nós é que os instruímos para que sejam egocêntricos como nós. Aliás, somos extremamente arrogantes nesse sentido, posto que queremos ser donos de tudo. Os donos do mundo somos nós. Mas o mundo mesmo... O mundo... Não tem dono! Esquecemos desse pequeno “detalhe”.

 

Atualmente estamos vivendo numa bomba-relógio, tal qual a que carregamos dentro de nós. O mundo está se acabando. Vivemos numa era verdadeiramente apocalíptica. Daqui a poucos anos, o que será de nós? Esses ventos... Essas tempestades... Esses ciclones... Esse mar revolto... As calotas polares... Os ursos... Os Ventos... As tempestades… Os homens... A Terra... A neve… O gelo… Os mares... O que será de nós? Nós, meus caros amigos, somos o câncer desse mundo. E temos um câncer dentro de nós. A verdade é que chegamos a um nível tal que só fazemos algo por alguém se esse alguém tiver feito algo por nós. E só o fazemos a todos, se houver nisso algum interesse meu, por mim, para mim ou para os outros que vão nascer deste egocêntrico eu que jamais teria a capacidade de viver ou morrer por todos nós. Eu, por exemplo, pensando unicamente em vingança, sobrevivo. Se não houvesse uma única pessoa nesse mundo a quem eu pudesse atirar as atrocidades que atiro sobre o íntimo que nos é comum, me entregaria ao manto do esquecimento. Porém, por pura e implacável necessidade de dar ao mundo uma dose do seu próprio veneno, eu não morro. Nem hei de morrer tão cedo! Viverei mais que Dercy Gonçalves!

 

Em tudo, é preciso dizer que ninguém no mundo é tão bom ou tão mau quanto parece. Ou seja, participamos todos do mesmo bolo fecal. Isso nos seria possível entender se todas as nossas intenções, pensamentos e sentimentos pudessem ser sensíveis aos nossos olfatos. Os odores seriam muito mais frequentes que os cheiros, isso eu afirmo e assino. Seria consideravelmente elegante se cada um de nós pudéssemos ser como os livros em que se folheia e se lê as páginas para descobrir o conteúdo. Eleger um político pelo verdadeiro cheiro ou conteúdo seria ótimo! Escolher os amigos e parceiros também seria um deslumbre. Mas infelizmente somos apenas como as capas desses livros e nada mais que isso. O conteúdo, às vezes, a gente descobre.

 

E voltando ao seu câncer, como será que ele anda? Esse tumor que você carrega está em qual nível? Será que você vai morrer disso? Eu não queria ser tão desagradável a ponto de assustá-lo ressaltando a gravidade do assunto... Mas é um problema seríssimo. O pior é que às vezes só a quimioterapia não cura. Não cura... A vida, meus senhores, não vale às vezes o que nela a gente busca. Eu sei que é uma indelicadeza dizer o que digo, e eu sinto em dizer, mas digo: Ela não vale uma prata do seu bolso. E isso aqui não é uma visão pessimista... De maneira alguma. Eu sou muito otimista, por sinal, e apesar de tudo. Eu acredito... Acredito mesmo... Acredito muito. Acredito... Na capacidade que temos de auto-ajuda, na auto-cura, nem que para isso precisemos fazer algum tipo de tratamento de choque.

 

(Continua…)

 

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Oscar Calixto
Enviado por Oscar Calixto em 23/12/2009
Reeditado em 21/05/2023
Código do texto: T1992006
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