Os Mateadores
Ana Esther
Pequena nota no jornal
Cadáver masculino, aparentando aproximadamente 40 anos, encontrado enforcado numa árvore nos arredores da cidade. A polícia até o momento suspeita de suicídio mas prossegue com as investigações e aguarda a identificação do corpo.
Programa de televisão, vespertino, muito popular
- Boa tarde gente! Está começando o programa Debates com Silva da Silva, que detem a maior audiência do país! Vamos direto ao assunto por que o tempo da TV, como vocês sabem, é curto e caro!!! O tópico para Isto é certo ou errado?, parte inicial do nosso debate de hoje, é a nota de suicídio que vazou para a imprensa: o executivo que enforcou-se na semana passada! Caberá ao público presente aos nossos estúdios e aos nossos fiéis internautas que nos acompanham decidir se... Isto é CERTO ou ERRADO???
- Eeeeeehhhhhh!!!! -Gritou o público, rindo e batendo palmas, orquestrado pelo animador de platéias.
- Sim, amado público, você tem o poder de decidir aqui no nosso programa se as razões alegadas pelo executivo para se suicidar estão certas ou totalmente erradas! O nosso querido locutor Paspalhinho Jr. lerá na íntegra a carta deixada pelo enforcado. Uma exclusividade do nosso programa...
- Ooooohhhhhh!!!! – A admiração do público interrompeu o apresentador Silva da Silva por alguns segundos.
-... mas primeiro vamos a uma breve mensagem do nosso patrocinador!
Sede da Cia Jr&Jr Ltda. Intl. S.A. do Brasil - 15 anos atrás –
O jovem João Anon Filho, recém formado em Administração de Empresas, consegue o seu primeiro emprego como Gerente de um Departamento muito respeitado da empresa. Sentiu-se um pouco surpreso em ter sido aceito para um cargo tão importante mesmo havendo confessado ao entrevistador sua inexperiência. Contudo, justamente pela confiança nele depositada e com o estímulo do alto salário e carro da Jr&Jr Ltda. Intl. S.A. do Brasil a sua disposição João prometeu que seria um funcionário exemplar, que realmente vestiria a camisa da empresa.
Promessa cumprida. Sem depender de transporte público para trabalhar, João era o primeiro a chegar ao escritório e também o último a sair. Era muito grato aos patrões por lhe terem permitido o uso de um carro da empresa uma vez que também agilizava a resolução de qualquer galho externo. João era simpático e seus subordinados o respeitavam e até gostavam mesmo dele. Seu entusiasmo se refletia nos negócios. Tudo fluía com sua supervisão e participação ativa. João abdicava de fins-de-semana, fazia hora extra quase todas as noites pois era solteiro. Suas primeiras e merecidas férias foram de apenas quinze dias uma vez que havia vários funcionários também em férias e a empresa não poderia arcar com substitutos.
Só havia uma coisa que desagradava João. Ele, no entanto, não se sentia ainda com autoridade suficiente para reclamar e nem conseguia imaginar uma solução que não fosse afetar o bom relacionamento com seus subordinados. Incomodava-o enormemente o fato de que eles, com efeito, utilizassem a meia hora de intervalo a que tinham direito segundo o estatuto da empresa. Durante esta pausa o grupo se reunia para matear e contar causos. O encarregado pelos apetrechos para o chimarrão da tarde era sorteado de véspera em algum concurso de trova ou piada informalmente organizado para este fim. Riam e papeavam com gosto. João fora convidado para se juntar a eles, mas de tanto recusar, ao longo do tempo, os convites cessaram. Durante aquela meia hora da mateada João seguia seu trabalho com maior afinco afim de que nada atrasasse.
Com o passar dos anos, João não entendia como seus subordinados, aqueles mateadores, eram escolhidos pela presidência da empresa para outros cargos, bons e de grande prestígio, ali na sede ou em filiais. E ele, embora elogiadíssimo, permanecia no mesmo cargo. Estava perdendo a paciência com os mateadores. Para eles tudo era motivo de festa. Nunca podiam permanecer após o horário do expediente, os fins-de-semana eram sagrados e dedicados inteiramente à família. Estavam sempre alegres. Legalmente não havia nada a ser feito contra eles. Mas João intrigava-se com a aquiescência da presidência com aquela perda de tempo ‘institucionalizada’. Cabia a João compensar o desperdício das malditas meia horas de mateadas acumuladas há anos e anos. João seguia com suas horas extras e fins-de-semana reduzidos, mal suportando ver a cuia de chimarrão passar de mão em mão animando a prosa dos colegas.
Finalmente, ao completar 15 anos de empresa, seu desconforto com os mateadores chegou a tal ponto que João tomou coragem e resolveu marcar uma hora com o Vice-Presidente para expor suas teorias contra aquele cancro que ameaçava a empresa. Agora se sentia seguro pois já era um funcionário ‘antigo’, sempre ganhador de prêmios por produtividade, recebia anualmente o título de funcionário do ano. Estava consciente de sua total dedicação, nem férias mais ele sequer pensava em gozar. Sua esposa, uma ex-funcionária da empresa, reclamou tanto desta dedicação extremada que João se chateou e pediu o divórcio. Até um infarte ele já tivera causado pelo estresse. Na ocasião, seus chefes, surpresos e visivelmente espantados, o haviam parabenizado pessoalmente pelo rápido retorno ao trabalho.
Quando João entrou na sala do Vice-Presidente, no horário da tradicional roda de mateadores, sua perplexidade tolheu-lhe a palavra. Em sua frente todos os mais altos executivos que trabalhavam na sede estavam ali reunidos, inclusive o Presidente. Cambaleou. Saiu de seu torpor ao escutar a voz do Vice-Presidente que, indicando-lhe uma cadeira, convidou-o:
- Junte-se a nós! Está bem na hora do nosso tradicional chimarrão. Orgulho maior da nossa empresa! – Disse o Vice-Presidente com um largo sorriso nos lábios e entregando-lhe uma enorme cuia de chimarrão.
Programa Debates com Silva da Silva
- Estamos de volta com o programa Debates com Silva da Silva! E agora o nosso locutor Paspalhinho Jr. fará, com exclusividade, a leitura da carta do executivo que se enforcou. A palavra está com você, Paspalhinho Jr.!
- Obrigado, Silva da Silva. Senhoras e senhores, passo imediatamente à leitura da carta deixada pelo enforcado. Agradecendo antes o patrocínio da Erva Mate Verdíssima Tchê!
- Eeeeeehhhhhh!!!! -Vibrou o público batendo palmas, instigado pelo incansável animador de platéias.
- Diz a carta... - Paspalhinho Jr. preparou-se para a leitura, amenizando o tom até ali eufórico.
“Não agüento mais! Tiro minha própria vida por admitir minha incompetência total. Desperdicei minha juventude trabalhando para uma empresa que me valorizou muito aquém do meu merecimento. Perdi a esposa que me amou tanto e cujo único defeito era querer mais tempo junto a mim... Passei anos implicando e menosprezando aqueles odiosos mateadores. Funcionários de visão. Perceberam logo como valorizar seu trabalho e eu, cego, fiz tudo errado. Eles todos aproveitando e eu marcando passo. Não mereço viver! Como pude não perceber a origem daquela tradicional meia hora de folga, de papos, de trovas, daqueles mateadores miseráveis?”
- Muito obrigada, Paspalhinho Jr.! Uma leitura deveras emocionante. E agora está na hora da participação do nosso querido público aqui presente esta tarde! Sim, e você aí de casa pode participar através do nosso e-mail ou do telefone que você já sabe de cor e salteado!!! Queremos saber a sua opinião. O executivo que se enforcou era realmente incompetente? Ou os chefes dele é que não perceberam o valor que ele tinha? Ou seja, ele estava certo ou errado em tirar a própria vida? A palavra agora é com o público aqui no estúdio. Afinal de contas, você é que sabe... Isto é CERTO ou ERRADO???
- Eeeeeehhhhhh!!!! – Gritou o público, inflamado pelo animador de platéias.
- Você responde já, já! Logo após o comercial!
*Este meu conto foi publicado no jornal Letras Santiguenses número 84, Novembro/Dezembro-2009.