Bentinho

Bento Gusmão da Silva, era assim que Bentinho respondia a quem lhe perguntasse seu nome. Era um mulatinho, sorridente, franzino e levado que morava no Arraial de Baixo, filho de Sebastião e dona Gertrudes, já contava com seus quinze anos quando eu o conheci. Para minha surpresa quando cheguei ao vilarejo, ele veio correndo até mim dizendo que minha tia Filó acabava de cair e quebrar o braço. Sai correndo do trem e fui correndo ver titia, quando lá cheguei a casa estava toda perfumada e arejada, não havia traços de quaisquer incidentes. Entrei cozinha adentro e vi tia Filó dando ordens a Matildes, ela me olhou e veio até mim com os braços abertos. Perguntei se não tinha nada de errado com ela ao que me disse que não. Ela me olhou estupefata e me perguntou por que eu estava aflito. Disse a ela o que havia acontecido. Descrevi toda a cena da minha chegada a estação até sua casa. Ela me ouviu calada depois disse que só podia ter sido Bentinho, que de bento não tinha nada.

No outro dia sai para passear e ver como tinha crescido a vila fundada por meus avós, dei de cara com o mal feitor, corri até ele e lhe falei que aquilo não era coisa de se fazer, ao que ele deu de ombros e caiu na mais sonora gargalhada juntamente com todos que se encontravam na pequena vendinha do Chico. Fiquei envergonhado, olhei pra todos e sai enfurecido dali, mas pude notar que apenas Chico não ria da minha desgraceira toda. Bem, procurei não mais me lembrar de Bentinho, mas sempre ouvia alguém dizer “só podia ser este maldito Bentinho”. Virava e mexia Bentinho aprontava uma das suas, subia em árvores e jogava frutas podres nas pessoas que passavam, dava susto nos mais velhos e nas crianças, batia nas portas das casas e saia correndo, jogava bombinhas próximas as pessoas que cochilavam na praça, entrava na igreja e tocava o sino três vezes (isso na vila queria dizer que alguém havia morrido) e todos saiam de suas casas para saber o ocorrido. Padre Feliciano não sabia mais o que fazer a respeito, quando todos se esqueciam do fato, lá estava Bentinho novamente.

Bentinho levava uma coça quase todos os dias, quando não era do pai, era da mãe, porém não se emendava, ao contrário ficava mais atrevido e jurava vingar de todos. Não restavam dúvidas, ele infernizava a vila. Seu ponto fraco era ver alguém doente, pelo menos isso, fazia de tudo para ver a pessoa boa novamente só pra lhe azucrinar.

Passei a observar todos os passos de Bentinho desde então e percebi que mesmo sendo tão chato às vezes suas brincadeiras eram engraçadas, isto também tenho que concordar. Pois bem, passados alguns meses na vila, quando tomei coragem para entrar na venda do Chico, lá estava Bentinho, com os olhos esbugalhados contando uma das suas para seus ouvintes que até lhe davam algumas coisas em troca de favores do gênero. Chico ouvia tudo calado e sem fazer qualquer comentário. Lhe pedi um trago da melhor cachaça e bebi de uma só vez, fazendo careta. Quando ia debruçar o copo no balcão o infeliz do Bentinho fez cócegas em mim e lá se espatifou em mil cacos. Saiu correndo antes que Chico pudesse falar ou fazer alguma coisa. Apenas gritei umas palavras horríveis para ele e novamente as mesmas pessoas começaram a rir. Só que desta vez não sai da venda. Traguei outro copo de cachaça e me assegurei que o peste não estava atrás de mim. Paguei Chico e sai dali.

Ao mais tardar da noite estava eu lendo quando fui chamado lá fora, para minha surpresa era Chico que disse que precisava conversar comigo. Disse a ele que entrasse, pois titia a muito estava dormindo. Entrou e se assentou desconfiado na poltrona que lhe indiquei. Era um homem de feições calmas, porém tinha um olhar misterioso, conheci-o desde que era menino, foi casado e enviuvara-se novo depois disso nunca mais se casou. Contavam que jamais havia se esquecido de Maria Idalina, sua falecida esposa. Tinha somente um filho que havia se casado e morava na capital, era médico e sempre passava o Natal com Chico. Perguntei o que o trazia a minha casa àquela hora da noite e ele me disse que era o tal Bentinho. Fiquei em silêncio e o ouvi desabafar, dizendo que não aguentava mais aquele moleque metido e trapaceiro, não podia dizer nada em seu estabelecimento, pois todos ali o admiravam como se fosse um herói. Concordei com a cabeça apesar de não estar entendo muito bem o assunto. Depois que ele terminou de falar eu o olhei intrigado. Houve um breve silêncio e ele continuou dizendo que tinha um plano para acabar de vez com aquele malandro. Nesse momento meus olhos brilharam e fiquei curioso por saber do que se tratava. A medida que me falava de como pegar Bentinho, não aguentei e cai na gargalhada. Era mesmo infalível, não tinha como dar errado, desta vez Bentinho ia se dar mal. Consenti com o que Chico iria fazer, nos demos as mãos e ele saiu de minha casa. Naquela noite não consegui dormir tamanha era minha vontade de ver o que iria acontecer no outro dia. Mal o dia amanheceu corri para a venda do Chico e por lá fiquei até aparecer o moleque. Chico tinha um lenço amarrado no queixo, o que se supunha estava com dor de dente. Bentinho se achegou até ele e lhe perguntou o que podia fazer para aliviar tamanha dor. Chico lhe respondeu que ele não podia fazer nada, que o remédio, só tinha na farmácia de Albuquerque Noronha, uma cidadezinha que distava dali umas oito léguas e meia. A cavalo era um dia de viagem. Era uma longa caminhada. Não é que Bentinho se dispôs a ir buscar o remédio para Chico? Chico lhe disse que não precisava se incomodar, que ele tinha que agüentar. Bentinho arrumou um cavalo e lá se foi, era por volta de dez horas da manhã o que nos dava um dia a mais de longa espera.

Naquele dia a vila ficou sossegada com a breve partida de Bentinho. Pude até olhar a mimosura de Mariana, a filha mais nova de doutor Cândido Peixoto, o advogado da cidade. Andei de braços dados com ela pela praça, nos assentamos em um banco e contamos nossas vidas um ao outro. Perguntei-lhe se Bentinho alguma vez já havia aprontado com ela ao que respondeu afirmativamente. Segundo ela, ele subiu até o teto de sua casa, ficou próximo a sua janela e deixou cair um espantalho que segurava como uma marionete. Ao entrar no quarto ela e suas duas irmãs deram de cara com o boneco balançando ao vento como se fosse um fantasma que soltava fogo pelos olhos. Elas saíram correndo e chorando e só ouviram uns gritinhos em cima da casa. O pai olhou pela janela e viu Bentinho lá em cima, tentou em vão pegá-lo, pensou até em processá-lo. Bentinho ficou sabendo e ficou sumido por algum tempo, isto fez com que o pai encerrasse tal assunto. Para Mariana ele tinha parte com o demônio. Era mesmo terrível. Mudamos de assunto, porém não conseguia parar de pensar em Bentinho. Fui para casa, depois é claro, de deixar Mariana na sua. Tomei uma xícara de café e conversei com tia Filó. Coisas triviais. Tomei um bom banho e continuei lendo um livro policial, mas minha cabeça fervilhava, pois queria que o outro dia chegasse logo para voltar à venda e ver Bentinho adentrando ali com o remédio que aliviaria a suposta dor de dente de Chico. Enfim não consegui dormir novamente, quando começava a cochilar meus pensamentos me traiam e me punha a rir pra mim mesmo.

No breve fechar de pestanas que dei acordei assustado com o burburinho das pessoas dizendo que algo terrível havia acontecido com Bentinho. Levantei-me e sai correndo, titia me disse para tomar o café, nem resposta lhe dei. Tranquei a porta atrás de mim e encontrei a rua em polvorosa. Bentinho entrava na vila, desfalecido sobre o cavalo, segurava em suas mãos o que parecia ser o remédio, o sangue pingava pelas costas, por um instante senti um nó na garganta e vi quando Chico saiu em direção ao pobre rapaz. Chico ainda estava com o lenço que lhe prendia o queixo, ele o tirou e começou a gritar, segurando Bentinho em seus braços, neste instante o moleque abriu os grandes olhos e deu uma gargalhada que fez Chico tremer de raiva. Bentinho disse que quando voltava viu uma vaca morta e pessoas que a escarnavam, pediu a elas que lhe derramassem sangue pelas costas, pois favor daquele tamanho sem um pega não podia acontecer. Dei graças a Deus por ser mais uma armação de Bentinho. Quando todos se deram pela coisa, Bentinho foi calorosamente aplaudido pelo seu público fiel. Terminadas as honrarias entramos todos para venda, neste instante Bentinho entregou uma latinha com aspecto duvidoso para Chico, este por sua vez o agradeceu e na frente de todos tirou a dentadura da boca e a cobriu com uma pomada. Naquele momento todos começaram a rir e zombar de Bentinho que por sua vez não se deu de rogado e caiu na risada, olhando Chico colocar de volta a dentadura na boca. Quando Chico tentou abrir a boca, não deu outra a dentadura estava toda colada. Este a retirou novamente e começou a esbravejar com Bentinho. O moleque faceiro como o cão, olhou nos olhos de Chico e lhe disse assim com estas mesmas palavras “Sô Chico, ri mió quem ri por úrtimo num é memo?” Então todos, inclusive eu e Chico começamos a rir, fazer o quê diante desta situação.

Bentinho era mesmo levado como o quê, nada o podia deter e daquele dia em diante desisti de fazer qualquer coisa que fosse contra ele. No final eu e Chico compreendemos que o melhor mesmo era conviver com ele e aceitá-lo como era. Pensávamos que com o tempo Bentinho tomaria juízo, de fato isto nunca ocorreu. Todos ali no fundo no fundo gostavam daquele moleque e das suas diabruras. Quando ele não estava na vila não tinha graça nenhuma. Verdade seja dita Bentinho era mesmo a alegria de Arraial de Baixo.

Vania Morais
Enviado por Vania Morais em 20/12/2009
Código do texto: T1987972
Classificação de conteúdo: seguro