Do fundo do coração do menino grande
O amor fez um rasgo de delicadeza no tecido da minha puberdade; o cerzido possível encontrou a trama já adulta – mas se eu tivesse me tornado alfaiate, essa história não teria conta alguma.
Eis o pano e seus recortes.
M. era bonita, afetuosa e alegre; de forma igual, metia-se em nossos brinquedos, coisa que eu e outros moleques da família e da rua adorávamos; era, também, casada com um de meus primos mais velhos, um sujeito meio pedante, cioso das responsabilidades, tipo 'dono da razão', et cœtera e tal.
Eu esperava com ânsia o quinzenal Domingo do Almoço e quando o casal e os filhos chegavam, eu a observava retirar do carro a parafernália infantil e cumprimentar os parentes – não necessariamente nessa ordem –, acreditando haver certa mágica na coordenação das duas tarefas.
Nem havia Domingo, se ela não vinha. Mamãe se preocupava: "Come, menino! É a garganta? Deixa eu ver se 'tá com febre... Eu me esquivava, o prato meio cheio, a lembrança vazia, a saudade latejando, antes fosse a garganta. Mas a agonia era só no Domingo do Almoço, que os outros eram de bola, pois menino amador também sabe de prioridades – valendo o registro que minha alminha nem aguentaria, todos os domingos sendo 'dela'.
Uma vez, numa daquelas conversas que começam não se sabe bem como ou porque, os moleques falamos sobre M. Gabriel – outro parente pouco mais velho que eu – considerava-a “uma tremenda gata, muita areia para o caminhão de um cara!" (referindo-se ao marido ou a qualquer um, por certo) ; Danilo, o vizinho de quase doze, gostava quando ela mexia nos cabelos – se dela ou dele não ficou claro; até o Tuta ("Gustavo, pô!"), caladão e o melhor amigo que um sujeito pode ter, emitiu "Ela é legal" – e 'legal' era seu máximo elogio a alguém. Creio que todos éramos, em algum grau, apaixonados por M.
Quando não podia vir ao almoço (eu torcia muito, muito!), o primo – que os menores chamavam 'tio' porque parecia tio, mesmo – fazia-se representar por M. e a prole, um menino moreno, risonho e calmo, e uma garotinha de cabelo cacheado e curto, que passava de colo em colo com ares de rainha em liteira.
As crianças eram um caso à parte: eu misturava ciúmes, inveja e bem-querer, quando ela os acariciava, o que fazia com frequência irritante. Mas o tempo parecia não passar enquanto eles cochilavam após o Almoço, quando ela se largava conversando com meus pais e tios e eu ficava curtindo a dor de cotovelo da falta do bem-querer, da inveja e do ciúme; aí eu cantarolava, assobiava, fazia uns barulhos aceitáveis, na esperança de eles, acordando, pedirem sua atenção.
Marido e mulher eram jovens, felizes e se talvez se amassem, àqueles tempos. Eles se tocavam como se amor os tocasse e se olhavam sob uma luz que os trazia mais nítidos, melhores; ela era inatingível e possuía um mistério – o meu mistério guardado – sem o saber.
A convivência com M. me encantou por pouco mais de sete anos, tempo que durou o casamento. Lembro-me de rumores acerca do primo-tio-muito-responsável distraindo-se demais com uma antiga namorada. Eu já conseguia perceber o mal que o 'demais' (que é como o 'desnecessário') pode fazer... Lembro-me também de M. afirmando não ser capaz de dar segunda chance em caso de traição.
Os Domingos acabaram para o casal, mas foi crueldade dela nos deixar à míngua de sua alegria e perturbação. Isso eu lhe disse, mais de vinte anos depois, no casamento da nenê-rainha, ela me escutando com aqueles olhos de lagoa funda e o sorriso davinciano – explicando-se, finalmente, a frustração de inúmeras madrugadas em que íris de outras águas e bocas a pincéis de batom intrometiam-se em meu sonho de acordar.
Eu lhe falei tudo isso, ela passando a mão nos cabelos, envaidecida, divertida e (sei agora) meio triste... Então, respondeu: "Eu sabia." Depois deixou a mão por uns segundos em minha face e arrematou: "Foi melhor assim…", e saiu para dar atenção aos convidados, porque mãe de noiva é para isso, também.
E eu? Bem, eu fora um moleque muito capaz de eleger prioridades – racional, portanto; pela facilidade com cálculos fiz-me Contador, então às contas: a diferença de treze anos que sempre nos separou não fazia mais tanta diferença assim. Além disso, eu jamais a havia traído – ou seja, nada de 'demais', 'de menos' ou 'desnecessário'.
Ela guardou o mistério, e o bordado ficou melhor assim.