A Terrível Revelação do Senhor dos Fantasmas
Ana Esther (Balbão Pithan)
Hagner Hans Werner da Silva estava tendo problemas para atravessar paredes. Não se convencia. Todos os outros fantasmas que conhecia passavam através de toda e qualquer parede sem maiores dramas. Hagner Hans, no entanto, ficava trancado, tentava, tentava e nada. O problema o estava afetando de maneira tal que ele, muito a contra gosto, convenceu-se que deveria consultar-se com o Senhor dos Fantasmas.
Antes de entrar no consultório resolveu comprar um jornal para ter o que ler enquanto esperava sua hora. Sempre relutante, olhou a porta de entrada, considerou-a por uns instantes com alguma esperança. Porém, o desânimo venceu, nem tentaria atravessá-la. Não a porta da casa do Senhor dos Fantasmas... Seria um vexame total falhar logo lá.
Tocou a campainha. O som estridente nem acabara de soar e a Secretária-fantasma, atravessando a porta com a maior naturalidade, o cumprimentou em um português claro, sem sotaque.
- Senhor Hagner Hans Werner da Silva, brasileiro, 32 anos, solteiro?
- Sim, esse sou eu mesmo.
- Queira entrar, por favor. – Disse a Secretária-fantasma assoprando um vento direcionado à maçaneta da porta que, ao abrir, rangeu devido a falta de uso das já enferrujadas dobradiças. – Sente-se na poltrona e fique confortável. O senhor está um pouco adiantado, não é?
- Ah, sim. Não se preocupe, eu até trouxe o Fantasma em Foco de hoje para ler durante a espera!
Hagner Hans Werner da Silva acomodou-se na única poltrona da sala de espera de teto alto e decoração antiga. Muito antiga. Abriu logo o jornal e afundou a cabeça entre as páginas. Queria disfarçar, pelo menos um pouco, o seu constrangimento de estar ali esperando o Senhor dos Fantasmas. Os outros pacientes, pensou aborrecido, ao menos ainda tinham mais esperanças do que ele. Eles conseguiam flutuar e apegar-se nos candelabros, nos quadros de fantasmas famosos do passado. Uns até mesmo mimetizavam-se adquirindo formas incríveis como de teias de aranha nos cantos das paredes ou como cortinas esvoaçantes.
O pobre do Hagner Hans suspirou acabrunhado com sua sorte e passou à leitura das manchetes fresquinhas do Fantasma em Foco. O planeta Terra estava um caos: TERREMOTO MATA MILHARES; CORRUPÇÃO NO PODER SUPERIOR; PEDOFILIA NA INTERNET; DESCOBERTOS 3 NOVOS VÍRUS LETAIS; VIOLÊNCIA FAMILIAR BATE RECORDES; ASSALTOS COM MORTE VIRAM ROTINA; 1052 ESPÉCIES DE PLANTAS EXTINTAS; IMPUNIDADE AUMENTA; DESEMPREGO AUMENTA AINDA MAIS; MORRE O ÚLTIMO MICO-LEÃO DOURADO; TELE-ENTREGA DE DROGAS; ESPORTES – MANIPULAÇÃO DE RESULTADOS & DOPPING; CRIMES CIBERNÉTICOS JÁ ESTÃO AÍ; DEPUTADOS FINGIRAM, SENADORES MENTIRAM, VEREADORES NÃO SABIAM DE NADA; AQUECIMENTO GLOBAL AMEAÇA ATÉ A DIMENSÃO DOS FANTASMAS; PROSTITUIÇÃO INFANTIL & TURISMO SEXUAL; FUGA EM MASSA DE PENITENCIÁRIAS; IMPRENSA PERSEGUIDA; PESQUISA REVELA – POVU AXA XIQUI ÇÊ ANARFABÉTU...
Desesperado com as manchetes Hagner Hans fecha o jornal. A taquicardia que desenvolvera nos últimos meses. Outra vergonha. Fantasma com taquicardia! Mas era sempre assim, ele não tinha mais forças para ler além das manchetes e já passava mal. Imagina se lesse o corpo do texto. Surgia aquela incômoda sensação de impotência. Um gosto amargo na boca. Um desespero depressivo de não saber o que fazer para mudar esta situação no planeta. Tanta iniqüidade e ele ali sem poder fazer nada. Uma falta de esperança completa. Reclamar para quem? Pegar em armas? Votar em quem, são todos farinha do mesmo saco. Que fazer?
???
Hagner Hans Werner da Silva sentiu um calor subindo por seu corpo até chegar à cabeça. Era uma explosão de raiva incontrolável. Descontou no exemplar do Fantasma em Foco, rasgou-o em mil pedacinhos. Sentiu até prazer com isso. Respirou fundo e recostou-se na poltrona. Ao levantar seus olhos percebeu os outros pacientes fantasmas flutuando para lá e para cá alheios a sua miséria interior. Concluiu por fim com uma dor imensa no peito: essa sensação de impotência, de não poder ajudar, não conseguir interferir no destino dos que ficaram vivos na Terra é, sem dúvida, a pior parte de ser um fantasma.
A Secretária-fantasma, em sua escrivaninha, brincava de entrar e sair de um vaso cheio de fenecidas flores fantasmas. Hagner Hans sentiu uma solidão imensa. Seu tumulto interior estava acabando com ele. O Senhor dos Fantasmas era a sua última chance de redenção.
Para seu alívio, sua vez havia chegado. O Senhor dos Fantasmas, com sua ficha na mão, sabendo de sua incapacidade para atravessar paredes teve a gentileza de abrir a pesada porta de madeira para ele entrar no consultório. Ali também havia apenas uma poltrona. Hagner Hans Werner da Silva, de cabeça baixa passou encabulado pelo Senhor dos Fantasmas e foi sentar-se na poltrona resignadamente.
Para fantasmas o tempo é relativo. Hagner Hans passou horas e horas despejando nos ouvidos do Senhor dos Fantasmas todos os seus problemas. O fato de não atravessar paredes passou a ser detalhe. Acabou sua longa lenga-lenga num choro convulsivo.
- Oh, Senhor dos Fantasmas! Ajude-me, por favor. Eu não agüento mais esta impotência fantasmagórica. Não poder fazer nada para melhorar a situação do planeta... Qual é o meu problema?
Depois de escutar pacientemente aquele paciente tão insólito, o Senhor dos Fantasmas declarou com sua voz estrondosa:
- O seu problema é muito simples. O senhor... não é um fantasma!
Hagner Hans teve um choque. A taquicardia voltou. O terrível Senhor dos Fantasmas prosseguiu com sua revelação bombástica.
- O senhor não morreu! O senhor é apenas mais um dos milhões, ou bilhões de habitantes da Terra que se omite diariamente de agir. Finge que não vê, que não é nada com o senhor.
E profetizou irônico.
- Mas não se preocupe! Isso passa. É só questão de tempo, de pouco tempo! Então, quando o senhor realmente for um fantasma, me procure de novo. Quando os seus problemas forem os de um fantasma verdadeiro.
Não mais que de repente, tudo sumiu: o Senhor dos Fantasmas, a poltrona, a Secretária-fantasma, a casa. Menos o Hagner Hans Werner da Silva. Ele ficou ali paralisado, com medo, impotente.
*Este conto de minha autoria é parte integrante da 6a. Antologia da Associação dos Cronistas, Poetas e Contistas Catarinenses (2009), págs. 11-14. Os demais escritores participantes da Antologia são: Augusto de Abreu, Cristina Vianna, Deyse de Abreu Teodoro, Dora Duarte, Elisabete Ossig, Idê Maria Bitencourt, Inês Carmelita Lohn, Ivan Alves Pereira, Maria Elena Lamego Mattos, Nadir Helena de Bastos, Nídia Maria Albino de Bem, Paulo Rutigliani Berri, Rosa DeSouza, Shirlei Guerra, Simone Aparecida Marcelino de Jesus, Susana Zilli de Mello e Zeni Maria de Oliveira da Cunha.