Mariazinha

A dona da pensão me encarou com seus olhos grandes e verdes, antes de começar a falar.

Era negra, tinha quarenta anos ou menos, usava calça rosa e uma blusa de enorme decote. Dava para ver um pouco os fartos seios que possuía. Batom vermelho, colares e brincos nas orelhas.

- Quero informar que os hóspedes não atoleram barulho. Eles são um pouco rudes e eu preservo o máximo possível de perturbação, pôr isso nada de barulho. Disse para mim.

- Pode ficar sossegada, não sou barulheiro.

- Espero. Assine esse formulário, por garantia.

Ela me passou uma folha e uma caneta.

- Damos café das sete às nove da manhã. Almoço das onze às duas da tarde. Não damos o jantar, sugiro que vá à padaria do outro lado da rua. E banhos até as dezoitos horas. Dizia ela quando eu assinava o formulário.

- Aqui está! Passei o formulário para ela.

Ela o examinou e depois colocou debaixo do balcão. E entregou à chave.

- Quarto 36. Seja bem vindo à pensão “Barca de Medeiros.”.

- Obrigado.

Peguei a mala e fui subindo a escada. A dona me parou.

- Um momento. O senhor trabalha num jornal?

- Trabalho. Respondi.

- Hã... pode ir, desculpa perguntar.

Entrei no quarto, coloquei a mala na cama e deitei. Espreguicei-me e estalei meu corpo.

O quarto possuía uma cama, armário de uma porta e duas gavetas, uma mesinha e o espelho pendurado na parede e uma janela com cortina.

No dia seguinte levantei a oito. Tomei café, mas nenhum hóspede apareceu. Apareceu a dona fazendo pergunta.

- O senhor não é de São José dos Campos?

- Não. Fui transferido.

- Ah, bom...

- Algum problema?

- De modo algum. Tome o seu café sossegado.

Na recepção ela me perguntou de novo.

- O senhor faz matéria policial no jornal que trabalha?

- Faço.

- Ah, bom.

Deu um sorriso sem graça e eu segui no meu novo local de trabalho. Jornal novo, companheiros novos e patrão novo.

O editor é gente fina, não é chato como o meu antigo.

Ele considerou meu texto bom, disse que estava lendo um conto.

Assustei com a afirmação, nem no meu velho emprego, nem meu antigo editor falou que meu texto era em forma de conto.

No final considerei como elogio.

Voltei às dezessete horas. Tempo de tomar banho.

Retornei do banho e dentro do quarto sentada na cama uma menina.

Eram loura de longo cabelo, olhos azuis. Usava vestido igual da Alice no País das Maravilhas. Aparentava Ter doze, onze ou dez anos.

- Oi. Disse eu gentilmente.

- Oi. Disse ela seca.

- Mora na pensão?

- Moro.

- Como se chama?

- Mariazinha.

- Faz tempo que mora na pensão, Mariazinha?

- Acho que sim, não me recordo.

Ela levantou. Foi direto na mesinha onde tava o notebook.

- Gozado. Você é a primeira moradora que eu encontro nesta pensão.

- E nem vai encontrar mais ninguém. Disse apertando uma das teclas do notebook.

- Eles não costumam sair?

- Talvez.

- E seus pais, onde estão?

- No quarto.

- Posso conhecê-los?

- Vai ser difícil.

- Eles não gostam de visitas?

- Acho que sim.

Andou até a porta, abriu e disse tchau.

- Tchau.

Que estranho era a menina. Tinha um ar misterioso dentro dela.

Esperei dar dezenove horas e fui à padaria e comi dois mistos quentes e suco de laranja.

...

No outro dia nenhum hóspede encontrei tomando café. A dona da pensão veio conversar comigo.

- Está bom o café? Ela perguntou.

- Está.

- Bom. O senhor está gostando da pensão?

- Sim, estou. Ontem uma garotinha entrou no meu quarto.

- Garotinha? Que garotinha?

A mulher ficou surpresa.

- Disse que se chamava Mariazinha e que mora na pensão. Uma menina bonitinha.

- Ah, bom...

Percebi que ela ficou sem jeito.

Fui escalado para cobrir uma matéria de assassinato. Voltei à pensão no anoitecer. Ainda tive tempo de tomar banho.

E a menina estava no meu quarto.

- Oi, Mariazinha.

- Oi.

Ela estava com aquele vestido de Alice.

- Como vão seus pais?

- Bem.

- Eu posso vê-los?

- Eles não vão querer.

- Por quê?

- Não sei.

- E eles aceitam que você entre aqui?

- Eles não podem dizer nada.

- Veio escondida?

- Não.

Andou até o notebook e começou a apertar a tecla.

- Você conhece os hóspedes?

- Conheço.

- E vêem eles?

- Não.

- Eu não os vi de novo. A dona disse que eles saiam tarde para tomarem café.

- E nem vai ver.

Foi andando em direção a porta.

- Tchau.

Foi embora.

- Mariazinha espere!

Abri a porta, mas ela não estava ali.

Desci a recepção, estava vazia. A pensão vazia.

Comecei a ficar preocupado. O ar, e o ambiente me apavorava, sentia que algo sobrenatural poderia nascer.

Entrei no quarto e dormi sem comer.

Cedo no café conversei apenas com a dona.

- Ontem desci pra falar com a senhora e não a encontrei na recepção.

- Estava arrumando coisas lá no fundo. Não gosto nada desarrumado.

- Tenho a sensação que sou o único nesta pensão.

- Bobagem.

- Ah! Esqueci da menina.

- Menina?

- A que diz que mora aqui.

- Ah, sim! A menina.

Ficou sem graça, não sabia onde enfiar a cara.

...

Passam-se semanas e semanas. O trabalho no jornal vai indo bem.

Na pensão só vejo a dona que às vezes some sem explicação.

Nestas semanas Mariazinha não apareceu.

Voltando do jornal finalmente Mariazinha estava esperando no meu quarto.

- E aí? Disse ela.

Abriu um agradável sorriso.

- Tudo bem? Perguntei curioso.

Ela balançou a cabeça confirmando.

- Você não veio mais.

- É.

- Estranho, a dona reage diferente quando cito você. Parece que nunca te viu.

- Sem dúvida está certa. Ela respondeu.

- Que ela possa estar mentindo?

- Que a reação dela possa ser verdadeira.

- Você não mora na pensão com seus pais?

- Sim, moro. Mas ela não me vê. Quer dizer, via, não vê mais.

- Como não vê mais?

- Não sei, ela não vê.

- Não entendo... há cheiro de mistério no ar como se essa pensão escondesse algo que não consigo perceber.

- Você não irá ver ninguém, os hóspedes não avo sair dos quartos. Ficam trancados, não podem sair.

- E como você sai?

- Saindo.

- Ficam trancados... há algum motivo?

Ela inquietou, como se estivesse buscando a melhor resposta.

- Saberá logo. Adeus.

Saiu e fechou a porta.

...

Começava a sentir calafrios. Não ouvia sequer um ruído do lado de fora. O silencio reinava.

Voltava da padaria, nem a dona eu encontrava na recepção.

Começo a considerar que sou o único nesta pensão.

E Mariazinha?

A dona da pensão reage como se não conhecesse.

Estava deitado de olhos fechados quando senti uma mão gélida roçar meu rosto. Levantei assustado.

Era Mariazinha, sorrindo.

- Como entrou aqui? Perguntei ainda tomado de susto.

- Pela porta.

- Não ouvi nenhum barulho.

- Tenho meios de abri-la sem fazer ruído.

Dirigiu-se até o espelho e ficou admirando.

- Bonito espelho. Elogiou.

- No quarto dos seus pais não tem igual?

- Lá não tem.

- Mariazinha, eu quero ver seus pais.

- Não pode vê-los, não agora.

- Alguma objeção?

- Ainda é cedo.

- E os outros?

- Estão trancados.

- E a dona?

- Ela também.

- Ela conversa comigo de manhã, às vezes ela some, mas vejo. Além do mais ela precisa estar na recepção para receber os hóspedes.

- Tá. Você a vê, porém não de verdade.

- Menina, você me assusta.

- Eu não queria deixá-lo assim, não tem como...

Ela começou a se examinar no espelho, tocando o cabelo, o nariz, as orelhas, os olhos, lábio, o queixo, a barriga e a cintura. Afastou um pouco, depois se aproximou.

- Você sabe se a dona está lá em baixo?

- Ela está no quarto, trancada.

- Ela tranca a porta?

- Ela não tranca. A porta vive trancada.

- No entanto ela precisa destrancar para entrar.

- Ela entra sem abrir.

Fiquei observando ela se exibir no espelho.

- Eu não posso vê-la?

- Ela não vai atendê-lo, a não ser...

- O quê?

- Que pegue a chave do quarto dela lá em baixo.

- Ah, pára com isso, eu não tolero brincadeira!

- Não estou brincando.

- Não entendi o mistério, você diz que a pensão está trancada, no entanto você consegue sair e fala que a dona vive trancada.

- Desça e pegue a chave e terá o mistério desvendado.

Levantei. Fiquei de frente a ela. Ela de costas se exibia no espelho. Porém olhei no espelho e não vi sua imagem.

- Seu reflexo, ele não aparece no espelho!

Ela continuou do mesmo jeito.

- Eu não sei. Deve ser truque.

Virou e veio em minha direção.

- As chaves dos quartos estão lá em baixo. Não adianta bater e nem chamar, ninguém vai atender.

E saiu.

Escolhi ficar no meu quarto.

De manhã a dona no café perguntou como eu me sentia.

- Bem.

Respondi. Mentira.

Não consegui relaxar, dormi pouco e quando percebi era hora de levantar.

Ainda ouvia as palavras de Mariazinha.

“As chaves dos quartos estão lá em baixo. Não adianta bater nem chamar, ninguém vai atender.”

Quero que seja brincadeira.

- A senhora viu Mariazinha?

Ela me encarou, fingiu não entender.

- Vi no corredor. Respondeu.

Levantei da cadeira.

- Tenha um bom dia, senhora.

- O senhor idem.

...

Noite.

Esperei Mariazinha, ela não apareceu.

Tomei a escolha de descer e pegar as chaves dos quartos.

O corredor vazio. Silêncio.

Desço. A dona não está. Eu esperava por isso.

Vejo o molho de chaves de baixo do balcão. Pego.

Entro no meu quarto. Examino as chaves, pensando se devo usá-las.

E se a menina estiver caçoando de mim?

Crianças da idade dela adoram travessuras.

É brincadeira, só pode ser.

- Não vai abrir os quartos?

Pulei. Estava distraído, pensando que nem notei a presença de Mariazinha.

- Está pensando no quê?

- Achando que possa ser brincadeira para deixar-me apavorado e rir de mim.

- O último que esteve aqui teve a mesma idéia.

- O último que morou aqui?

- Morou neste quarto, ficou com medo e era teimoso como você, foi embora.

- Não entrou mais hóspede?

- Você é o primeiro.

- Há muito tempo?

- Bastante tempo.

Chegou ao espelho e seu reflexo não aparecia.

Apertei o molho de chaves.

- Vou abrir. Disse.

- Legal! Disse mexendo no cabelo.

- Vem comigo?

- Pode ir.

- Não sei qual delas abrir.

- Abra a do meu quarto. O número é o 22.

...

O quarto 22 ficava no fim do corredor.

Estava receoso. Talvez medo.

Coloquei a chave na fechadura. Girei, destrancou.

Um rugido de porta velha rugiu criando um enorme barulho.

- Você?!

Era Mariazinha diante de mim, como se estivesse esperando eu abrir a porta.

- Finalmente... Disse ela aliviada.

- Como chegou antes de mim?

- Corri.

- Tem coisa aí.

- Tem mesmo.

Ela se afastou e estendeu o braço como se fosse fazer uma apresentação.

- Estes são meus pais.

Na cama estava um homem louro de cabelo curto e de fraque preto e uma loura de vestido longo. Ambos mortos deitados de barriga pra cima com os braços cruzados.

O sono era tranqüilo e eterno.

- Precisamos avisar alguém!

- Até quanto vai ficar sem entender!

- Quer dizer que todos na pensão...

- Como eles aqui.

- Mortos?

- Totalmente.

- Vai me dizer que você também?

Ela confirmou com a cabeça.

Comecei a rir, a gargalhar. Ri tanto, até arrancar lágrimas.

- É brincadeira. Você morta?

- O espelho no seu quarto revelou como sou. A forma de me encontrar, do meu aparecimento repentino. Reparou que a porta estava fechada? Como eu conseguiria entrar? Como eu poderia entrar se fiquei no seu quarto? Isso responde suas dúvidas?

Comecei a relembrar.

- Você... Não tinha palavras.

E ela entendeu.

- Há quanto tempo?

- Não sei, perdi a memória.

- Qual é a causa das mortes?

- Envenenamento.

- Por quem?

- A dona.

- Ela está viva?

- Tá morta. Matou-se, acho que se arrependeu, vive aparecendo, mas está morta. Pelo menos conseguiu entender, o último correu daqui e ficamos esperando muito tempo e finalmente você apareceu. É teimoso, faz muitas perguntas. Só pedimos uma coisa, queremos descansar, queremos a liberdade.

Entrei nos quartos e realmente os moradores estavam mortos vestidos elegantemente. Liguei na polícia, no hospital. Eles vieram logo.

Fiquei escondido, não queria responder que eu era o único vivo na pensão.

Vizinhança, pessoas passando, curiosos para assistir.

E no meio da rua vejo Mariazinha com seus pais. Ela vira e me vê e acena.

Meio sem jeito aceno para ela. Mariazinha de mãos dadas com os pais sorri com um agradecimento e esse sorriso ficará marcado pelo resto da minha vida.

Rodrigo Arcadia
Enviado por Rodrigo Arcadia em 10/12/2009
Código do texto: T1971144
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