VELHO RIO PARANAÍBA


Minha tarefa hoje é falar dele... O velho rio. Tenho adiado esse momento nem sei bem o porquê, já que me fascina tanto aquele velho rio. Talvez eu estivesse juntando palavras. É um equívoco pensar que me esqueci desse pedaço da natureza que faz parte de minha vida. Mas tenho desviado sempre meus ideais. Acho que não sou de seguir esquemas padronizados. Desenhá-los no papel ou na mente e segui-los à risca. Eu até tento... Mas fujo sempre a essas regras tolas. Acho que as coisas exatas me confundem. Preciso de certa dose de falta de organização para organizar minhas memórias ou o que quer que seja. Elas saem mais perfeitas.

Percorrendo esses atalhos que tenho feito em minhas idéias planejadas, fui deixando para trás o velho rio. Mas hoje não tive como escapar. Ele estava lá na curva dos projetos de minha memória a reclamar minha presença. Então, hoje, meu ideal é desenhá-lo em forma de palavras nessas folhas brancas e sensíveis. Quero transpor o velho rio para dentro dessas palavras e envolver-me nos mistérios de suas águas turvas.

Faço então, meu coração criar asas e voar até suas paragens, através da caneta que empunho como se fosse uma máquina do tempo. Ela me faz pousar na praia de pedras redondas e marrons, onde me acomodo e fico olhando as águas que correm ligeiras, formando remansos em cada curva.

Gosto daquele remanso, naquela curva perto da pedreira. Acho assustador e belo. Porque a beleza é assustadora e perigosa? Ela envolve como se quisesse tragar. Tenho uma vontade enorme de me envolver em suas águas, mas apenas molho os pés timidamente nas suas margens. Com um barulho espalhafatoso o velho rio ri do meu medo incompreensível. Corro a me sentar na areia segura e fico a atirar pedras só para ter o prazer de ouvir o estalar sobre suas águas. Acho que estou sendo meio tola ou a timidez de estar diante do velho rio se torna maior. Ele é como um soberano e nos faz curvar-se à sua passagem.

Ah! Velho rio... Desde criança cruzei suas águas, na velha canoa de tábuas, para ir com meus pais a festas do outro lado. Atravessei suas águas rasas para buscar o gado na pequena ilha. Brinquei com meus irmãos nessas praias, quebrando castanhas daquele coqueiro na ilha. Ele não está mais lá. Cortaram-no. As pescarias então... Foram tantas... Umas valeram a pena, outras não. Mas o que importa?

Importa mesmo é essa relação de cumplicidade que nos envolve desde minha infância e que me faz ver no velho rio, além da sua beleza, um amigo silencioso que transmite uma paz interior tão profunda quanto seu leito. Essa paz, eu encontro aqui à sua margem, apesar de viver com meus temores. Até mesmo o temor de molhar os pés em suas águas. O amadurecimento nos faz mais reservados e medrosos, mas também nos faz admirar mais. Hoje compreendo o fascínio que ele exerce sobre mim e o olho com os olhos de minha alma. Quanto à minha insegurança, releve... A vida me ensinou a ser insegura e a ter medos. Não deveria... Mas que fazer?

Então, molho novamente meus pés em suas águas. Elas o acariciam, tentando me transmitir confiança e afastar esses temores tão aflorados. Entre sussurros me pega pela mão e me faz caminhar por elas. Arrisco um olhar perdido para as árvores que enfeitam suas margens. Algumas debruçam seus galhos roçando as águas, como se fizesse reverências. Garças tão alvas roçam suas asas nas águas turvas e arrematam em seguida para o céu. Queria ser como as garças que sobrevoam o velho rio. Quanta intimidade... Não tem apegos... Não tem temores e ainda tem o privilégio de voar. Volto meu olhar para o espelho das águas do velho rio e me vejo através de sua transparência meio turva. Uma imagem apagada se desenha ali... Uma imagem minha, meio turva, meio trêmula.

Volto a me acomodar na areia, e em pensamento, formulo um diálogo silencioso com o velho rio. Fico a falar de minha vida, tão longe de minha infância que corria por aquelas margens. Fico a falar dessas coisas que marcaram minha vida ao longo desses muitos anos. Será que o velho rio compreende essa dialética que faz o ser humano passar por uma metamorfose diariamente? Penso que até ele mesmo passou por essa metamorfose ao longo desses anos, embora suas curvas sejam as mesmas.

O velho rio esteve sempre ali... Desde o princípio da terra. Sofreu a metamorfose das enchentes e viu suas águas rolarem em fúria, seguindo atalhos pelas várzeas. Sofreu a metamorfose da seca profunda e viu suas águas arranharem quase as profundezas de seu leito. Viu as árvores de sua margem serem cortadas, dando lugar às lavouras. Obrigaram-no a emprestar suas águas para que a lavoura desses frutos. Já não basta a águas das chuvas. Apesar de tudo é o mesmo. Eu já não sou a mesma e não estive sempre aqui. Talvez os pensamentos estivessem enquanto os pés caminhavam outras estradas.

Debruço-me sobre os joelhos e fecho os olhos. Fico imaginando todas essas passagens, muitas das quais, fui testemunha ocular. Sofri como ele a metamorfose da vida em ciclos que aos poucos me envelhecem. Sua metamorfose, entretanto não o envelhecerá e não carcomerá suas formas apesar de mudar seus contornos. Será sempre belo. Eu, no entanto... Vai chegar o dia em que o olharei já curvada, cabelos brancos sem o artifício das tintas e um rosto cheio de marcas. Talvez o semblante angustiado por saber que quando eu me for ele ainda ficará aqui e nem se lembrará que um dia amei suas águas.

Agora, diante do velho rio, fico pensando tudo isso e avaliando toda uma vida. Toda a sua vida e a minha. Quantas vezes ainda me sentarei nessa praia e ficarei vagando meus olhos pelas suas curvas e te fazendo confidências? Quanto dessas águas ainda será preciso para que a mente humana compreenda sua importância? O que eu sou na verdade para mim mesmo e para esse velho rio? Um ser quase invisível diante de sua grandeza, que perde o olhar dentro do nada. Sua grandeza me apequena. Nada me pertence, nem mesmo minha lembrança que ouso despejar em suas águas. Tenho um pessimismo que fere e que repousa na minha ignorância. Resultado de uma vida cheia de buscas e quase nenhum encontrar. Mas não é justo, contudo, inquietá-lo com essas minhas atitudes.

Meu egoísmo me impediu até agora de ouvi-lo e só falei de mim. Essa tendência de soltar as feras tem me deixado um pouco insensível aos outros. Perdoe-me. Acho que chegou a hora de ouvir o velho rio. Compreendo que ele tem muito a me dizer. Estranho essa sensação de que as águas falam. Percebo o velho rio inquieto. Deve ser a urgência em me falar de suas inquietudes. Penso que também suas águas devem chorar, pensando num futuro negro. Se for assim, quero sentir seus sussurros, como se me falasse de sua compreensão e também de seus temores. Sim, porque o velho rio também deve ter seus temores. Esses temores de um futuro incerto. Porque a mão do homem é impiedosa quando se trata de alcançar seus objetivos.

Então, fiquei ali por um tempo, em comunhão com o velho rio. Silenciei até meus pensamentos para ouvir os do velho rio e compreendê-lo. Ele passou por mim diversas vezes e molhou meus pés, entendendo que eu o escutava e o amava ainda mais. Toquei suas águas com minhas mãos, acariciando sua transparência meio turva. Queria lhe transmitir todo o sentimento que tem me acompanhado desde minha infância. Ele me compreendeu e molhou minhas mãos numa leve carícia, retribuindo o sentimento. O velho rio compreendeu, assim como eu, que nossos laços se tornaram ainda mais fortes e se afastou.

Um vento frio me trouxe de volta à realidade. Uma sombra vindo do horizonte desceu sobre as águas do velho rio formando vultos sem forma. O entardecer anunciava que a noite estava perto. As águas do velho se recolheram ao seu mundo e silenciaram de repente. Dizem que à noite as águas silenciam e também dormem. Queria ficar ali e velar o sono do velho rio, mas preciso deixar esse paraíso. Devagar me levanto e ando pela areia sem fim... Molho mais uma vez os meus pés nas suas águas sonolentas, até que meu coração novamente cria asas e voando de volta à realidade, pousa no fim da linha daquela folha branca e sensível.






 
Sonia de Fátima Machado Silva
Enviado por Sonia de Fátima Machado Silva em 08/12/2009
Reeditado em 16/09/2019
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