O CABOCLO

Eu e minha irmã éramos bem pequenas quando meu pai o trouxe da cidade para viver com a gente. Eu na verdade era ainda um bebê. Foi assim que aquele garotinho negro, a pedido de sua mãe veio viver na roça. Suas travessuras sem limites a levaram a tomar essa decisão. Com certeza para salvá-lo das más companhias. À vezes mãe renuncia para salvar. Quem pode julgar, senão Aquele que conhece todos os pensamentos? Desde então, o garotinho passou a fazer parte de nossa família. Ficou com a gente até se tornar um rapaz para depois partir em busca de sua própria vida. Até então, meu pai cuidou para que recebesse uma boa educação, não faltando para isso até mesmo umas boas chineladas. Formou assim, seu caráter exemplar e tornou-se querido por todos nessas redondezas.

Hoje, viajei no tempo, como sempre tenho feito, e me vi, de repente, naquela época, quando o garotinho negro veio viver com a gente. Eu bebê ainda e umas mãozinhas negras a embalar-me na rede para me fazer dormir ou acalentar o meu choro. Fora meu pajem na simplicidade de seu jeito infantil e travesso. Certamente não me lembro dessas passagens já que era apenas um bebê. Mas minha mãe me contara muito tempo depois quando já eu podia compreender as coisas.

Enquanto eu apenas dormia, ofício mais comum dos bebês, minha irmã mais velha era companheira de suas peraltices de criança. Depois cresci e quando meus passos já não eram tão incertos me juntei a eles. Lembro-me então das brincadeiras no quintal, um paraíso que escondia mil formas de brincar. Naquele bananal perto da bica d’água passávamos o dia na fabricação de queijos feitos de banana verde. Depois as transportávamos de barco. Barcos rústicos feitos pelo caboclinho de uma madeira macia chamada buriti. A bica d’água era nosso rio, onde o barco se perdia cortando remansos até o outro lado.

Crescemos juntos e à proporção da idade que nos cabia. Depois se tornou um rapaz e partiu para trabalhar em outras fazendas. Teve sua família. Algum tempo depois fora vítima de uma bala destinada a outra pessoa e quase perdeu a vida. Sobreviveu. Mas ficou a marca no rosto onde sempre vi um sorriso marcante.

Raramente o vejo. Mas algumas vezes, quando vem à cidade, passa no meu trabalho para me cumprimentar. O seu rosto negro e sorridente aparece na janelinha de vidro do escritório. Saúda-me com aquela voz meio cantada e pergunta pelo padrinho (meu pai). Retribuo o cumprimento e ao mesmo tempo me transporto para aqueles tempos tão remotos e tão queridos e fico a recordar do menino caboclinho que me embalara na rede.

Ele certamente não sabe que me lembro de tudo isso... Nunca lhe disse nada sobre essas minhas lembranças e sobre o título de pajem que lhe dei desde o dia que descobri que me embalava quando bebê. Ele, certamente também deve se lembrar desses momentos, desses pedaços de infância, assim como eu, apenas em silêncio. Assim, sem dizer uma palavra, eu o agradeço em pensamento, pelos pedaços de infância feliz que proporcionou a mim e minha irmã, e por ter sido por diversas vezes meu pajem... Meu pajem caboclo.

Sonia de Fátima Machado Silva
Enviado por Sonia de Fátima Machado Silva em 07/12/2009
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