VELHO CARRO DE BOI
Por um instante fechei os olhos, buscando lembranças, entre as poucas que consegui guardar. Acho que isso até já se tornou um hábito. Se me perguntarem o motivo, realmente não sei responder. Tem coisas ou manias que surgem do nada, sem explicação. Umas permanecem. Outras são como arquivos temporários e expiram em determinado tempo. Seja como for, resta-me, então, aproveitar a onda ou esperar que expirem no tempo previsto. Enquanto isso fico a passear no abismo de minha memória, como agora.
Nessa tarefa de vasculhar memórias, me deparei com uma tela apagada que emergiu das profundezas, ganhando cor e vida à medida que eu a trazia para minha memória de trabalho. Assim que tomava suas formas reais, pude ver que se tratava de um estradão meio disforme de tanto uso. Por ele, passara todos os dias, as vacas que vinham para ser ordenhadas. Por ele, meu pai passara para ir cuidar da roça de arroz e milho. Serpenteava, assim, sem pressa por entre um cerradão verde, salpicado de árvores pequenas aqui e ali. Uma cerca de arame farpado o separava do cerradão que o seguia até a roça de milho. Aquela que margeava o rio lá embaixo. Por ele, passou também, em época de colheita, o velho carro de boi, única alternativa de transporte de carga na fazenda, naquela época.
Na tela que se desenhou em meus pensamentos, além da imagem e dos movimentos, posso ouvir sons. O que eu ouço agora é um rangido longínquo e agudo ecoando pelas quebradas. Vez ou outra, a voz tão conhecida do carreiro gritava: eia, boi! Ôôô!! De repente, nas formas que se desenham na tela de minha memória, eu vejo um velho carro de boi aparecendo lentamente na curva do estradão, puxado por duas juntas de bois. O sol quente, a pino, fazia tremular a imagem ainda um pouco distante.
Ao mesmo tempo em que rangia, subindo e descendo ladeiras, carregado e milho, o carro de boi deixava suas marcas pelo estradão, levantando uma poeira avermelhada. Meu pai, carreiro de experiência, seguia atrás, a cavalo, orientando com técnica o carro de boi que seguia sem pressa. Enquanto na frente, o candieiro orientava a boiada a seguir pelo estradão, com uma vara de ferrão nas pontas, que vez ou outra, esporava os bois para alinhá-los. Era necessário, infelizmente. Nessas imagens não me lembro quem era o candieiro. Mas me lembro bem que, por algumas vezes, já fiz o papel de candieira, ajudando meu pai.
Não tenho muita lembrança dos bois, suas cores ou nomes. Mas me lembro vagamente de um boi negro. No semblante, a órbita dos olhos demonstrava uma espécie de medo. Certamente, o medo daquela lança enorme com ferrão nas pontas, e que meu pai empunhava como se fosse um guerreiro. Contraíam os músculos fortes os quais eram subjugados por uma canga de madeira que os uniam a seus companheiros. Fazia uma força enorme na subida da ladeira. Apesar de tanto esforço, pareciam elegantes nessa tarefa árdua e estavam acostumados à lida. Suportavam sem reclamar esse rojão pesado da fazenda. Foram treinados para aquela tarefa e era a única que conheciam além de ruminarem no pasto em seus momentos de descanso. Assim como meu pai, conheciam aquele estradão onde passavam todos os dias. Nem era necessário o candieiro, penso eu. Mas acostumaram-se a seguí-lo.
Em épocas de colheita era sempre assim. De manhãzinha ainda, meu pai botava os bois na canga e saía para cumprir a missão do dia. Satisfeito e animado, enfrentava o sol com disposição. Como um bravo sertanejo. Pelo estradão, seguia com o carro de boi, para voltar algum tempo depois com ele cheio de milho, ecoando pelas quebradas aquela cantiga tão conhecida e contínua do carro de boi. Aquela música era o orgulho do carreiro (meu pai), que se desdobrava em perfeição qual um maestro num concerto, onde o músico era um só, aquele velho carro de boi. Carro de boi carregado tinha que ter aquela cantiga, aquele gemido contínuo, como se lamentasse.
Minha mãe chegava à janela quando ouvia o gemido do cocão nas quebradas. Ficava olhando por algum tempo o carro de boi se aproximar, como se admirasse todo aquele espetáculo rústico e tão costumeiro. Certamente, admirava também o carreiro, seu marido, bravo guerreiro das capoeiras com a roupa maltratada pelo uso. Uma camisa meio aberta no peito, encardida pela poeira do estradão, a botina mateira já meio torta e o chapéu de palha já esfiapado nas beiradas. Orgulhosa de seu guerreiro corria para terminar o almoço, pois meu pai não tinha muito tempo e devia estar com muita fome. Saíra, nem bem o sol havia dado o ar de sua beleza e de seu calor, levando na capanga, quando muito, apenas um vidro de café que já devia estar frio e uma cabaça de água.
Eu e meus irmãos, crianças ainda, íamos encontrar com o carro de boi que ainda estava lá na curva. A gente corria atrás ou subíamos um pouquinho. Meu pai fazia questão de colocar a gente lá em cima das espigas de milho e ficávamos orgulhosos como se passeássemos num carrão. Depois meu pai descarregava o carro de boi na porta do paiol. A tarefa de guardar o milho era nossa. Era assim todo dia, em épocas de colheita, ou quando tinha que buscar lenha nos cerradões que circundavam a fazenda.
Além dessa tarefa árdua de buscar alimentos na roça, nosso velho carro de boi já nos levou para uma festa de arraial, há uns doze quilômetros. Era a festa de São Sebastião e São Miguel, bem famosa naquelas redondezas. Nessa festa, realizada todos os anos, meu pai e minha mãe se casaram. Nesta festa, eu e meus irmãos fomos batizados. Mas lembro-me, especialmente desta festa, em que nós fomos de carro de boi. Eu me lembro como se fosse hoje. Meus pais eram os festeiros e o carro de boi era a condução que tínhamos para levar as tralhas usadas na festa que durara nove dias. Foi uma viagem que jamais esqueci. Meu pai e minha mãe iam a cavalo seguindo e carro de boi. Minha mãe levava no colo minha irmãzinha menor, enquanto os outros iam sentados na beirada do carro, balançando os pezinhos. Vez ou outra pulávamos no chão e brincávamos nas margens da estrada colhendo florzinhas. Era um verde só, salpicado de poucas flores, pois a primavera havia começado há poucos dias. Fogos de artifício cruzavam o ar de vez quando. Meu pai dizia que era para animar aquela viagem tão puxada, e anunciar aos vizinhos que já estava de partida, cumprindo a tradição.
Eu tenho tanta saudade daquele velho carro de boi. Busco nessas minhas lembranças traços do que fora. Posso vê-lo debaixo da velha árvore enquanto apodrecia seus restos. Agora que não lhe sobra nem ruínas, ouço o gemido lamentoso de seu fim, qual a cantiga que ecoava nas quebradas longínquas. Sem o carro de boi, as fazendas perderam o brilho e a graciosidade peculiar do mundo rural. Caminhões e tratores fazem-lhe a vez, marcando o espaço em que fora rei durante séculos. Poucos são os lugares que conservam essa tradição tão rústica e lutam bravamente a favor de uma tradição que já não condiz com o mundo atual. Mais por exibicionismo do que por necessidade. Hoje eles são apenas relíquias expostas mais em memórias do que em museus, e constitui nada menos, que uma história de um passado engolido pela globalização.
Poucos são os que admiram esse passado tão fantasiado de coisas simples, e muitos são os que não sabem o que é sentir saudades de um pedaço de época. Cultua apenas o que ouviu da boca daqueles que tiveram o prazer de viver aquele tempo. Mas como o passado infelizmente não volta, a não ser nesses momentos de abandono em que vasculhamos memórias, resta-nos, então, acordá-las, como tenho feito, e no museu das artes dessas saudades, fazer emergir as telas pintadas numa época difícil, mas dourada, e inebriar-se no apogeu das mais belas lembranças.