UM VELHO AMIGO... O CÃO POLICIAL

Hoje, não sei ao certo, como aquela imagem negra povoou minha mente. Talvez pelo fato de estar envolvida a buscar lembranças. Então, nessas minhas reminiscências, não seria justo se não falasse dele. Não seria justo se não lhe rendesse um merecido tributo.

Velho amigo! Quanto tempo faz que não me lembro! Entretanto ele foi companheiro inseparável do tempo mais perfeito de minha vida. Hoje vivo correndo contra o tempo. Não da maneira que corria pelos campos sem tempo estabelecido e com ele ao encalço em folguedos infantis. O tempo hoje me parece pouco para viver tudo que preciso. São tantas coisas para se lembrar! Entre elas a sua imagem, que durante anos sepultei no fundo de minha memória.

E como o cérebro não segue uma seqüência lógica de lembranças, elas ficaram guardadas todo esse tempo. Não há um cronograma estabelecido para se lembrar. Mas hoje sem que eu me desse conta, me lembrei dele e quis falar de minha afeição. Falo ao léu. Bem sei. Pois sua alma não existe para que ouça as palavras que lhe dedico. Fosse ainda vivo talvez não lhe dissesse tudo isso. O estar sempre presente não nos mostra a importância de exprimir sentimentos em palavras. Os gestos ou os instintos simbolizam esses sentimentos. Ainda mais quando se é criança, onde tudo é aflorado. A simplicidade, a alegria e o prazer de viver.

Já faz tanto tempo! Mas hoje foi como se eu o visse... Tão belo! Os pêlos sedosos brilhavam de tão negros. Punha-se a correr fogoso pelos prados, em brincadeiras travessas em nossos passeios domingueiros. Brincava com as borboletas que se desprendiam dos ramos como pétalas de flores coloridas levadas pelo vendo. Seguia algum lagarto ou preá que se assustava com nossos passos no meio do capinzal. Seguia-os com agilidade só para ouvir nossos risos marotos que ecoavam pelas planícies cheias de verde e de sol. Queria agradar. Sentir-se companheiro. Talvez quisesse mostrar àqueles pequenos peraltas que a felicidade era tudo aquilo: uma infância em comunhão com a natureza e nada mais.

Depois amadurecia seus gestos e a responsabilidade falava mais alto. A uma ordem de meu pai, tornava-se vaqueiro experiente buscando sozinho o gado no pasto ou na ilha do velho rio, onde iam saborear o verde capim que nascia ali. Depois seguia meu pai quando ia campear a cavalo na restinga distante com a mesma disposição que seguia os pequenos travessos. Obedecia-lhe atentamente às ordens e entendia todos os seus gestos. Tinha uma inteligência e uma amizade rara.

Lembro-me das vezes que ficava a uivar lá no fundo do quintal. Era assim todas as vezes que meu pai ia à cidade no velho jipe. Ele pressentia quando meu pai descia a serra da restinga. Seria sexto sentido? Ou telepatia? Talvez algo capaz de ligar as almas de fiéis amigos. Do fundo do quintal avistava-se a estradinha ao longe, onde seu olhar se perdia. As patas fincadas no chão e a cabeça erguida na ânsia da espera... O uivo contínuo se perdia na tarde qual um clamor de saudade e ausência. Não demorava muito meu pai chegava dirigindo o lerdo jipe e ele ia-lhe ao encontro saudoso da sua presença. Nunca me esqueci desses instantes, apesar de ser ainda tão criança.

Durante o dia era um trabalhador incansável e um amigo brincalhão. À noite, transformava-se num feroz cão de guarda. Poucos conhecidos nossos poderiam se aproximar com segurança da casa, à noite. Lembro-me uma vez, já mocinha, ele quase estraçalhou um toca-disco no meio da madrugada. Algum jovem insensato ousou burlar a segurança, para fazer serenata para nós. Ficamos sem a serenata, enquanto o seresteiro fugia apressado das garras de nosso cão policial.

Infelizmente os anos passam, girando os ciclos normais que tecem o viver. E embora tentemos correr contra o tempo, ele nos alcança e não tem clemência. Insensivelmente traz a velhice e as doenças. conseqüência desses ciclos que no anonimato vão destruindo as células que formam a matéria de todo ser vivo. Assim, nos surpreendemos com sua velhice para nós tão precoce e a doença designada para destruir de vez as células mais perfeitas de um ser animal e amigo. Vimos aos poucos as forças se esvaírem de seu corpo cheio de vida e beleza, e os olhos úmidos e embaçados que se abriam apenas para fitar aqueles aos quais dedicara toda a sua fidelidade. A tristeza estampada em seu olhar era um misto de dor e despedida. Ainda assim, nem um gemido se ouvia daquele corpo altivo que morria em silêncio.

Numa fatídica manhã o encontramos sem vida perto da estradinha em frente à casa. Seu corpo peludo e negro jazia inerte na grama molhada pelo orvalho da manhã. Perdemos o companheiro leal que tornava mais alegre as manhãs de domingo quando cruzávamos os espigões a colher flores e caçar grilos. Meu pai perdeu o vaqueiro, o segurança e o companheiro mais confiável. Choramos sua ausência. Aprendemos a conviver com ela. Até que nossas vidas tomaram diversos rumos. Entretanto, não o esqueci. Apenas adiei minha lembrança.

Hoje, enquanto lembrava do velho amigo, pude perceber que em toda a minha existência, nunca mais fui capaz de nutrir por outro cão, os mesmos laços que nutria por Bob. Assim se chamava o cão policial de pêlo negro e sedoso. Ele fora único porque fizera de minha infância a mais bela de todas as infâncias.

Sonia de Fátima Machado Silva
Enviado por Sonia de Fátima Machado Silva em 07/12/2009
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