Infeliz Natal

- Que seu Natal seja muito infeliz! Muito!!

Adriano nem se espantou com o fato de Lílian ter desligado o telefone na sua cara outra vez. Isso estava se tornando comum nela, explosiva da forma como andava ultimamente – seu inúmeros pequenos problemas, profissionais, familiares e financeiros, estavam minando sua já pouca paciência, e qualquer mal entendido era motivo para desespero. O que o espantou, e que o fez sentar-se ao lado do telefone, pensativo, era o significado daquele desejo, expresso com uma voz chorosa num início de tarde de 24 de dezembro: como seria ter um Natal muito infeliz?

Lembrou-se de natais passados, começando pela infância, quando a magia das luzinhas da grande árvore da casa da avó enchia seus olhos de expectativa e curiosidade. Depois, os cheiros deliciosos que vinham da cozinha, a família reunida, os primos pequenos em algazarra pela casa, tudo isso era reconfortante e saudoso. Mais tarde, já jovem, encontros com pessoas queridas, brincadeiras de amigo secreto, e por fim na idade adulta a volta de sua religiosidade, algumas missa do Galo, os trabalhos voluntários...

Teve então uma idéia digna de um livro de auto-ajuda. Rumou para a casa de Lílian, sabendo que iria encontra-la virada do avesso, com seus problemas agora multiplicados pela sensação de arrependimento. Nem atendeu à ligação dela em seu celular – o provável pedido de desculpas veio mais rápido que da última vez – e, ao invés disso, estacionou seu carro em frente à casa dela, tocou a campainha e esperou.

Ela saiu em prantos, mas ele nem se deu conta de assimilar as desculpas que ela verteu em sua camisa, umedecendo-a. Apenas abraçou-a, pegou-a pela mão e encaminhou-a a seu carro.

- Onde vamos? – perguntou Lílian.

- Quero entender exatamente o que você me desejou, um Natal infeliz – disse Adriano, com uma expressão tranquila no rosto. Ela se assustou e quis argumentar, mas calou-se.

Andaram alguns minutos e notaram que sob o viaduto jazia todo um pequeno grupo, cachorros inclusive. Estacionaram o carro a uma certa distância e observaram. Algumas crianças circulavam com seus trapos de cor indefinida por entre os carros parados no semáforo, pedindo qualquer coisa. Os vidros se fechavam, e, quando o semáforo abria, elas corriam umas atrás das outras rindo alto, como se o monturo sob a ponte fosse um playground mágico. Um dos adultos estava visivelmente alcoolizado, um adolescente cheirava cola, outro jazia imóvel ao lado de latas vazias, o rosto coberto pela folha do mês de setembro de um grande calendário de três anos atrás. Datas não faziam sentido ali, sob o viaduto da cidade.

Mais alguns quilômetros adiante, chegaram a um asilo conhecido de Adriano. Foi fácil parar o carro: o estacionamento de visitantes estava vazio. Lá dentro, idosos em todas as condições - imóveis, agitados, doentes, sãos, conscientes, dementes, tristes, alienados - e alguns enfermeiros, que os levavam pela mão ou em cadeiras de rodas a voltear indiferentemente um minúsculo e patético pinheiro artificial com bolas vermelhas brilhantes se equilibrando em seus esquálidos ramos falsos.

Já era começo de noite quando pararam no hospital municipal. Apresentaram-se como voluntários e passaram a visitar os leitos. Lílian parecia anestesiada, e já não manifestava nenhuma outra reação além de sorrir fracamente para aqueles seres que jaziam pálidos e mortiços em duros leitos, com tubos entrando e saindo de seus corpos vilipendiados pela tecnologia. Alguns em breve iriam para casa, outros não tinham expectativa, outros não chegariam a ver a luz daquela lua de Natal, que se anunciava, poderosa, pela janela do corredor.

Mais tarde, sentados num gramado de praça, cabeças apoiadas uma na outra, Adriano e Lílian contemplavam mudos e sérios, cada um com seu próprio pensamento e motivação, alguns fogos de artifício que explodiam na noite. Ainda que não estivessem participando de nenhuma ceia, e ainda que não tivessem tido a chance de trocar presentes este ano, tinham uma certeza em comum: seu Natal estava muito longe de ser infeliz.

______________________________________________________

Este texto faz parte do Exercício Criativo - Um Infeliz Natal.

Saiba mais, conheça os outros textos: http://encantodasletras.50webs.com/infeliznatal.htm