As asas
Ele não lembrava exatamente quando surgiram, mas abriam quando ficava alegre ou sentia raiva, ou tanta tristeza que pensava que morreria. Ele tinha medo de morrer e de não ser normal.
Cortara-as várias vezes, e cresciam; amigos ajudavam-no a arrancar as penas, uma a uma, pacientemente, e cada dor parecia fazer com que vingassem mais leves, céleres.
E cresciam...
Um dia experimentou intensa humilhação; surpreendentemente, as asas não abriram. Ele sentiu alívio e alguma esperança – talvez pela primeira vez após a alada vida –, então escolheu uma ocupação segura, onde frustração e auto alheamento fossem constantes: tratou de vender o corpo e o afeto. E cuidava de se sentir aviltado e impotente o máximo de tempo possível, pois que, até durante o sono, sonhos antigos, doces e agoniados quase desfaziam o encanto das asas.
Dormia pouco, atendia homens e mulheres sem distingui-los, e por reconfortante tempo não houve incidentes. As asas aquietadas, a possível cura, e ele vivia em sobressaltos de júbilo, entre medo e fé.
Então houve o momento, em pleno ato, quando ouviu chorar uma criatura; pego de surpresa e sem saber direito o que fazer, quedou-se a escutar a história de amor e abandono; estendeu a mão para consolar aquele rosto e as asas cresceram rapidamente, o tempo de ócio como que tornado-as mais ágeis e fortes.
Nada mais havia a fazer se não eram compatíveis solidariedade e paz. Sequer sentiu-se cansado, mas em certeza amalgamada, indistinta, determinantemente lenta e clara.
Ele tinha medo de não ser normal e de morrer, e envolveu-se em suas imensas asas, amarrou as asas junto ao corpo, atou-as firmemente a si, e jogou-se do décimo andar; no abismo nu um homem com medo e asas, que não mais se abriam.
E cresciam.