O Aniversário das Minhas Cicatrizes
Sinto o cheiro do concreto das escadarias. Não é algo tão agradável quanto os pratos deliciosos de fim de semana de dona Fernanda, mas ainda assim consigo aproveitá-lo. Arrasto meus dedos no muro irregular e áspero, chamam de chapisco, não sei é assim que se fala, acho que é. Sinto o calor dos raios solares preso naquela parede, confortando e aquecendo como uma mãe que tranquiliza o seu filhote nos dias frios de inverno. Impessoal, o muro continua ali, sem falar ou agir, sendo um atuante passivo de todo o calor agradável de seis e meia da manhã.
Desço as escadas silenciosamente, tendo como únicos sons os da minha respiração e o toc toc toc de minha bengala. Os pássaros tímidos cantam a primeira canção do dia quando o vento bate nas copas das árvores mais altas. Cansado, pernas enrijecidas de tanto esforço, brisa no rosto, sento sobre os últimos degraus da escadaria, num esforço homérico para não tombar e cair feito um velho desatento e frágil. Ironia seria chegar aos noventa e seis anos e morrer tropeçando no último degrau das escadas. Não, não ironia. Fatalidade. Dessas que sempre acontecem a velhos desatentos, que gastam tanto da vida e acabam morrendo engasgados com um pedaço de carne maior do que as suas dentaduras aguentam triturar.
Penso na morte todos os dias. De tudo o que me resta, pensar na morte é aquilo que mais me conforta. Essa sensação de saber que o fim chega; de sentir, com toda a certeza, o peso do mundo sobre os ombros. De acordar e esquecer quem é, onde está e o que está fazendo. A morte é minha musa. Em meus sonhos, esqueço-me daquela imagem de ceifador com a qual desde sempre aprendi a relacionar a morte. Não, a minha morte não é uma caveira suja de capuz negro e foice na mão. É, ao invés disso, uma adolescente das mais doces, com olhos amendoados e cabelos bem amarrados em duas tranças dos lados de sua cabeça. Tem um vestido de flanela e carrega consigo uma cesta de frutas, todas polpudas e cheias de vida, assim como ela. Mantém-se jovem usando e abusando de velhos como eu, tomando-lhes o que lhes resta de vitalidade. Tudo para que suas frutas sempre continuem polpudas e que seu sorriso nunca fique amarelado. É como Judy Garland no caminho das pedras amarelas, com Totó ao seu lado, sorrindo e cantando e sempre encontrando um personagem interessante com o qual pode se relacionar.
Encosto o queixo sobre a bengala, cansado. Esfrego os dedos sobre as cicatrizes dos meus pulsos, minhas companheiras inseparáveis há vinte e cinco anos. Hoje é o aniversário delas. Bodas de prata com as minhas companheiras mais fiéis e inseparáveis. Nem mesmo toda a senilidade da idade avançada me fez esquecê-las. Nem poderia. Estão aqui, todos os dias, ao simples toque das pontas de meus dedos, como uma amarga lembrança de minha única tentativa de adiar o encontro com minha Judy Garland particular. Plano frustrante e sem sucesso, que deixou como única recordação uma série de memórias amargas e um par de cortes transversais que, por sorte, nunca pude enxergar. As memórias continuam aqui ainda hoje, mas acho que não vale a pena remoê-las, nem mesmo no dia do aniversário de minhas cicatrizes.
Mas as memórias vêm. Por mais que tente reprimi-las ou pausar a minha linha de pensamento com imagens do Homem de Lata ou do Leão Covarde, elas sempre voltam. Sinto que as lágrimas patéticas e salgadas começam a escorrer pelo meu rosto, e me sinto estúpido por ainda chorar por conta disso. É mais forte do que todas as minhas convenções ou falsas emoções; maior do que as minhas farsas e meus sorrisos de ‘hoje está tudo bem’. É a sinceridade carnal de minhas particularidades. Coisas complicadas demais, das quais nem eu entendo muito bem. Tudo o que sei é que doi. As lembranças da dor doem mais do que a dor propriamente dita: ainda sinto as lâminas enfiando-se por minha pele, estourando vasos e fazendo o sangue jorrar dos pulsos. O barulho ensurdecedor da água do chuveiro e eu, caído no chão frio de qualquer jeito, brigado com Deus e perguntando por que o Soberano não poderia escolher outro para irritar com suas provações divinas. ‘Fraco’, eu ouvia uma voz dentro de mim dizer. Talvez fosse eu mesmo. Talvez fosse apenas Deus, decepcionado com meu ato e raivoso com minha decisão. Ainda hoje não sei dizer. Naquele breve momento, pensei que fosse fácil morrer. Pensei que tudo tinha dado certo, que eu tinha conseguido burlar as provações divinas com minhas próprias mãos e livre arbítrio. Quisera eu.
Acordei dois dias depois, zonzo e acreditando que estava no inferno dos suicidas. Mas estava apenas na cama de um hospital público, fedendo a urina e fezes involuntárias. Vozes nos corredores de lá para cá, pessoas correndo, barulho de sapatos, pessoas gritando, crianças chorando, insatisfeitos reclamando. Senti que alguém pegava em meu braço e o sacolejava.
“O senhor está me ouvindo?”, ouvi a voz dizer.
“Estou”, respondi, a garganta seca.
“Por favor, siga a luz da lanterna com os olhos”, ela disse.
“Não”.
“Por que não?”.
“Sou cego”.
A verdade estampada naquelas palavras doeu ainda mais do que as lâminas em meus pulsos. Era a primeira vez que dizia isso em voz alta. A primeira vez que admitia isso para alguém além de mim mesmo. Antes, tentava enganá-los com óculos de lentes grossas, sendo tomado apenas por mais um velho de vista cansada. Sentia que os dias passavam e o mundo sucumbia às trevas, gradualmente, lentamente, numa agonia constante. Então acordei, mas ainda estava escuro. Esfreguei os olhos e nada mudou. Via luzes cintilantes e multicoloridas, dessas que a gente não presta atenção quando está de olhos fechados. Tentava defini-las, mas tudo o que conseguia era me desesperar mais. Esfreguei os olhos com mais forças, mas tudo o que conseguia era que o desespero tomasse conta de mim.
Fui considerado um perigo para mim mesmo. A primeira providência seria ligar para algum familiar ou parente. ‘Não há nenhum’, eu disse, ‘moro sozinho’. Não daria o telefone de meu filho, sob hipótese alguma. Mesmo que fosse a única pessoa com quem pudesse contar – e era, naquele momento –, ainda assim preferiria a solidão por toda a infinidade. Então só me restava uma opção: uma casa de repouso, onde enfermeiras bem treinadas cuidariam de mim e vigiariam para que eu não cometesse mais nenhum atentado contra minha vida.
Foi quando cheguei aqui, aos setenta e um anos de idade. Com apenas uma mala nas mãos, três camisas e duas calças de brim. Sempre pensei que chegaria à idade avançada rico e famoso, repleto de saúde e belas mulheres. Minhas fantasias adolescentes, quando pensava que o mundo era pequeno demais para minhas ideias. Seria um grande astro, importante, teria meu nome marcado para sempre na história. Hoje não sei se alguém sabe que existo. Sou como um fantasma, e nem mesmo morri. Passo por esses corredores como um mau agouro, mas, ao invés de arrastar correntes, faço barulhos com minha bengala. Passo pelos outros internos, fétidos e acabados, piores do que eu.
Ninguém me vigia. Ninguém me limpa. Tenho sorte de ter conseguido manter minha lucidez e minhas capacidades motoras durante tanto tempo. Se fosse depender das enfermeiras, na certa já teria tentado encontrar com Judy Garland pelo menos uma dúzia de vezes a cada mês. Não seria impedido por ninguém, tenho plena certeza disso. No entanto, nunca mais tentei. Acho que o medo de uma segunda falha talvez seja um dos motivos. Não aguentaria ter cicatrizes sobre cicatrizes; lembranças postas acima de outras lembranças, me perturbando mais e com maior intensidade. Seria permanentemente infeliz, se fosse frustrado. Preferia não arriscar uma possibilidade de erro.
Então tudo o que faço é esperar, sentado sobre essas escadas, até o dia que ela chegar. Eu já até sei: virá cantando somewhere over the rainbow, com feno nos cabelos e aquele olhar que nem mesmo os tons de sépia conseguem apagar. Terá Totó ao seu lado e sorrirá, e eu poderei ver esse sorriso. E ela me roubará a vitalidade, mas eu não me importarei. Darei a ela de bom grado, apenas para ver aquele sorriso ainda mais iluminado e aqueles cabelos vermelhos ainda mais brilhantes. Virá com seus sapatinhos de rubi, e me dará a mão, Totó em seu colo, e dirá ‘não há lugar como o lar’ três vezes seguidas, batendo os calcanhares, olhos fechados em desejo sincero. Então levitaremos, longe das vistas daqueles que enxergam. E estarei feliz, pois sei que ninguém dará pela minha falta, talvez apenas os velhos do corredor, perguntando onde está o barulho da bengala. Eles não saberão, mas depois se acostumarão com o silêncio da manhã, como sempre foi e deveria ser antes de mim. Eu estarei longe, observando-os, deitado na minha cama de nuvens brancas, sorrindo com o brilho do sol refletindo em minhas córneas completamente límpidas, brincando de malabares com as estrelas. Estarei feliz, e passarei as pontas de meus dedos sobre meus pulsos, e as cicatrizes não estarão mais ali. Pois eu fui perdoado por minha tentativa antecipada, a morte sabe ser boa quando quer. E eu serei feliz, sei que irei. É nisso que penso, dia após dia. Penso em ser feliz. Penso que no fim tudo isso valerá a pena. Tudo tem um propósito, já ouvi alguém dizer. No fim, tudo aquilo que vivemos terá sua compensação.
Mãos tocam meu ombro. Sinto o cheiro de alfazema misturado com molho de carne de dona Fernanda.
“Vamos comer alguma coisa?”, ela me pergunta. Sei que ela está sorrindo.
“Vamos.”
Acho que ela não sabe meu nome. Nunca me chamou pelo nome, mas que importa isso? Levanto com dificuldade, sustentando-me nos braços dela, tão fracos quanto os meus, mas mais resistentes de tanto mexer em panela com colher de pau. Volto pela escadaria que subi, sentindo o cheiro de pão quente e café recém-coado. Maravilha.