Les Memoires Blessees
Elise tocava alguma melodia ao piano, na sala de música, ao lado. E eu, sentada no parapeito da janela, via a chuva cair em gotas grossas e cruéis, contra os vidros.
Sentia-me tão desfeita, tão despedaçada. Ainda não conseguia compreender porque tudo aquilo se passara. Por que Deus nos dera Phillipe se o pretendia tirar de nós tão cedo? Nosso pequeno irmãozinho, de pele clara e cabelos enrolados... Parecia um anjo, a correr pela casa nos dias de sol, logo pela manhã, ainda em seus brancos trajes de dormir.
E agora ele já não corria mais, tampouco se ria dos esforços da governanta em apanhá-lo. Phillipe estava embaixo do chão que eu pisava, sentindo a umidade da terra, sendo exposto aos vermes: carne recém morta, pronta para ser devorada.
Pensar nisso me dava vontade de chorar. Meu pequeno e indefeso irmãozinho virando banquete para aqueles animais escrotos, que dilacerariam sua pele tão macia e começariam a devorar sua carne ainda jovem, fraca demais para estar ali...
Parecia-me impossível que o mundo não tivesse parado. Por que o tempo estava continuando? Uma vida tinha acabado. Não devia haver um instante, uma pausa para a continuação?
A música de Elise ainda me soava triste, como o réquiem que ouvíramos mais cedo. Cada nota acompanhava uma gota de chuva ou uma lágrima, e eu permanecia no meu estupor diante da janela, vendo o anjo da morte se ir de nossa casa, com a mais valiosa das almas que nela habitava.