TRANSIÇÃO E TRADIÇÃO

De onde estava, era possível ver o céu límpido e azul com as nuvens brancas que mais pareciam flocos de algodão fofinhos a flutuar. Dava para ver também a coluna de fumaça negra subindo e dissipando-se ao sabor da leve brisa.

- O senhor está bem?

Enquanto os paramédicos tiravam-no dos destroços, aquele velhinho parecia não acreditar no acidente que acabara de sofrer. Tentou pronunciar uma resposta, mas nenhum som saiu de sua boca aberta.

No “três” ele foi colocado em uma maca enquanto finalmente começara a dizer:

- Ai meu...

- O senhor vai ficar bem. Dizia o outro paramédico enquanto empurrava a maca.

Zonzo, conformou-se em relembrar os últimos acontecimentos. Lembrava como este país lhe era desconhecido. Aborrecia-lhe o calor excessivo. Descobrira a altos preços o significado da palavra: tropical. Derretia-se em transpiração. Sofria.

Um tranco mais forte quase o derrubou da maca não fosse as amarras que o prendiam à cintura.

- O senhor está bem?

Arriscou um:

- Ai meu...

A máscara de oxigênio cortou subitamente a frase ao meio.

Respirando aquele ar, pouco a pouco foi se acalmando e surgiu-lhe à mente a figura esguia do Zequinha. O Zequinha fora encarregado de lhe acompanhar com a incumbência de lhe fazer conhecer este país tropical e todo entusiasmado iniciou por implicar com o trenó:

- Trenó é coisa de lugar gelado. Vende esta porcaria e compra um carrão. Um jipe! Arrematou.

Zequinha costumava dizer que havia decorado as marcas de todos os carros lançados no país até o fim da década de 70. De lá pra cá desistiu de decorar. Justificava sempre:

- É tanto carro novo, tanta marca que hoje eu não sei o nome de metade dos carros que andam por aí. Agora, carro que é carro...

No fundo o Zequinha tinha razão quanto à venda e a primeira oportunidade o trenó fora vendido com renas e tudo. Passou a fretar helicópteros. Coisa muito mais vantajosa do que jipe ou qualquer outro veículo. Teve que superar a dor de separar-se das renas. Seis ao todo. Foram servas dedicadas ao extremo e, ainda por cima, por incontáveis natais. Atrás dos olhos marejados de lágrimas das renas, teve a impressão, no momento da venda, de vislumbrar um brilho estranho de revanche a qualquer custo. Como uma maldição, nunca pronunciada, a ser executada em um futuro próximo contra ele próprio e seu ato de traição.

- Tolices! Procurou afastar aquele pensamento de sua mente, pois, afinal, o futuro batía-lhe à porta. O novo mundo estava aí para ser conquistado. Queriam ele com roupas de frio e barbas longas não importando o calor tropical. Figura deslocada adaptada às vendas. Queriam o lucro. Significado maior a ser alcançado, esse é o verdadeiro espírito nestes tempos. Seguiu em frente, a passos largos, rumo ao capitalismo selvagem.

A porta da ambulância fechou bruscamente prendendo sua atenção à sua situação atual. O paramédico saíra por instantes. Notou os dedos do pé onde antes havia uma bota e a perna da calça toda rasgada. Mexeu o dedão. Tudo bem com os pés, mas sentia uma certa dor no meio das pernas. Olhava, impotente, o teto da ambulância.

- Eu garanto! Esta palavra soava cada vez mais forte em sua mente. Sempre acompanhada pelo sorriso postiço do seu empresário.

- Você vai chegar, dizia ele, pousar no teto e descer pelas escadas de incêndio...

Todos os exercícios de alongamento, as aulas de alpinismo, horas de dedicação foram todos anulados pelo fato de não ter que descer mais por uma chaminé e sim pela escada de incêndio. País tropical não tem o hábito de ter chaminés nas casas. Casas sem chaminés, sem neve por lugar algum exceto nas geladeiras!

Dias antes, tentou explicar ao Zequinha sobre a neve e sobre as nevascas, mas este, com ar confiante arrematou a conversa da seguinte forma:

- Não! Flocos não caem do céu não! Eles vêem no picolé. Picolé de flocos!

Cansou-se e cansado suas lembranças acabavam por misturar-se em um turbilhão. Algodão, isopor, luzes piscantes, bonecos de urso, gnomos, formavam uma paisagem artificial de calor infernal. Abaixo, nas ruas estreitas, renas correndo e portando AK-47, outras com lanças granadas, segundos de silêncio e por fim, a explosão.

Em um pulo só o paramédico já estava dentro da ambulância que começava a movimentar-se.

- O senhor está bem? Perguntou enquanto tirava a pulsação.

O velhinho tentou levantar-se da maca, sentiu dores. Com a voz fraca falou:

- Aí, meu saco!

O paramédico olhou-o por alguns instantes para aquela barba chamuscada que escondia aquele rosto rechonchudo e vermelho do velhinho. Mordeu os lábios e disse:

- A hélice... Zapt!

DRAKKAR
Enviado por DRAKKAR em 01/12/2009
Código do texto: T1955352
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