A dama da Lapa – Giselle Sato


     Lapa. Bairro carioca do Rio de Janeiro, território livre da malandragem, resistência do “Bota-abaixo”, operação promovida pelo prefeito Pereira Passos. Vã tentativa de exterminar os cortiços apinhados de biscateiros, jogadores e excluídos. 
Os intelectuais reúnem-se nos bares locais. Freqüentam o Colosso, o Viena Budapeste, o Capela e tantos outros na Mem de Sá, principal via dos acontecimentos. Na esquina do Lavradio, rufiões, prostitutas e cafetões sussurram as últimas peripécias de Madame Satã. Escutam-se histórias sobre os alemães farreando nos sobrados com as mulatas. Verdadeiras farras regadas a bebidas importadas. “Polaquinhas” verdadeiras mesclam-se às gaúchas de olhos claros nos bordéis de luxo. Dizem que o melhor pertence à Madame Clessi. Os cabarés com vedetes e cantores estão lotados e o Rio de Janeiro é uma festa. A paradisíaca Baía de Guanabara e Copacabana são os cartões postais para gente de todo o mundo. Impossível resistir à noite.

     Saboreando uma boa caninha, de pé no canto mais escuro do balcão, Doutor José, ouve a voz arrastada de Catarina. O som monótono, insistente, repetindo a mesma ladainha:

     — Te amarei eternamente pelos bares da vida. Serei sua sombra, nunca te deixarei. Afastei seus amigos, tua mulher te abandonou com vergonha das bebedeiras.

     José  pediu um duplo, entornou depressa e bateu o copo no balcão:

     — Vai começar o tormento. Mais um, capricha sem pena. Estou ficando louco, ouvindo vozes e assombrações.

     — Seu doutor, um homem letrado falando estas coisas chega a dar arrupios 

     O grito do dono do bar calou Bentinho, ajudante do bar e simpatizante de José, generoso nas gorjetas.

     — Este moleque fala demais doutor, eu mesmo vou servi-lo. Xispa daqui e vá limpar as mesas. Abusado! Toma tenência ou te boto na rua!

     — Manoel, deixe o menino. Ele não fez por mal. Vou terminar os dias no hospício — o homem enxugou o suor na manga da camisa, disfarçou e cambaleou até a mesa de sinuca.

     O português olhava daquele jeito, de quem vê a desgraça diariamente, afogada em um copo de bebida:

     — Doutor José, não se martirize desta forma. Que pendenga está tirando seu juízo? O doutor precisa descansar, está abatido, descorado...

     — Amigo, não tens noção do meu sofrimento. Nem quero falar, prefiro beber até esta loucura passar. — o dono do estabelecimento e ouvinte dos clientes habituais serviu a terceira dose, quase a contragosto.

     Bentinho espiava de longe, tinha o dom da vidência, herança da avó africana. O doutor não estava doido. No canto do salão, a figura de Catarina assombrava a mente entorpecida. Neste instante sabendo que era observada, fazia pose em cima do balcão de bebidas. Vestido negro, decote expondo a pele clara, boca pintada em vermelho rubro, o riso delicioso em olhares lânguidos, cheios de promessas. O mocinho reconheceu de imediato a puta mais bonita da Lapa.

     Requisitada, festejada, pomo de discórdia de melhores amigos. Jóias, roupas e viagens. Tudo era pouco para a exigente Catarina. Fazia os homens ajoelharem-se aos seus pés para desprezá-los logo adiante. Maldosa mulher da noite, sem dono ou senhor, fazia o que bem queria e não respeitava nem a polícia. Corria à boca miúda a amizade íntima com o famoso transformista, o tal com a alcunha do malvado

     Quando conheceu José, foi amor à primeira vista. Desespero e agonia, 
a obsessão destruiu Catarina, tornando-a ciumenta. Esqueceu a vida para tomar conta de todos os passos do amante. José não agüentou as cobranças, escândalos e desmandos da mulher. Terminou o romance e conquistou a pior inimiga.

     Dando voltas em torno da mesa de bilhar, debruçava-se sobre o amante: 

     — Amanhã vamos às corridas no Jóquei Clube. Infelizmente sou seu amuleto de azar. Pobre querido, cada dia mais endividado...

     José  xingou irritado, após errar a jogada fácil. Os amigos caçoaram a má sorte. Catarina bebericava do copo de José.

     — Lembra, meu amado? Nossos beijos intermináveis... Tão gostoso! Você lambia minha boca, bebia meu gosto, cheio de desejo... Quanta loucura fizemos!

     José  suava frio, visualizava Catarina nua, expondo os seios brancos como leite, torcendo os bicos de cereja. Era assim que ele os chamava. Convidando dengosa para o amor “Vem, vem sentir sua florzinha branca meu amor. Vem...”

     O homem estava cansado, ajeitou a gravata e alisou os cabelos com os dedos. Podia ouvir claramente a voz da amante, suspirando:

     — Lembra quando me conheceu? Gritou aos quatro ventos que eu era a mulher da sua vida. Fiz de você meu dono e senhor, desprezei todos os outros. Fui viver em cortiços, abortei teus filhos, perdi a beleza e você me abandonou na sarjeta. — ela fez um carinho no rosto de José — Não adianta padre nem feiticeiro, não obedeço a ninguém além do meu desejo. O instante em que me apunhalou libertou meu espírito para te seguir. Sou teu castigo, assim como a cachaça que te obriga a viver pelos bares. 

     José  era um molambo bêbado no meio dos últimos fregueses. Não queria voltar para a casa vazia, cheia de lembranças. Dormir era sinônimo de sonhos eróticos com a defunta. Sexo vívido e extenuante. Acordava com os lençóis molhados. O gozo reprimido e envergonhado. O cheiro de Catarina impregnando o quarto era uma tortura. Podia sentir o corpo macio deslizando, roçando provocante. Desejava a textura da pele nas mãos vazias. Entrava em uma espécie de transe e perdia-se na ilusão, tateava o escuro procurando sentir a amante. Algumas vezes ela parecia tão real. Imaginava que faziam sexo dias e dias. José passava quase uma semana sumido do trabalho. Quando dava por si, parecia um morto-vivo, olheiras profundas, sem banho ou comida decente. Por mais que a odiasse, tinha uma atração louca, sensual, um ardor imoral. Desejava a morta o tempo inteiro, não tinha um segundo em que ela não estivesse em seus pensamentos. Atormentado, rememorou a briga fatal. A navalha de Catarina brilhando na escuridão, o sangue manchando o estofamento do carro, as ameaças até último suspiro. Depois o remorso, medo de ser preso e a idéia de empurrar o carro morro abaixo. Explosão e isenção de qualquer suspeita. 

     José  tomou mais um gole e mandou a defunta pros quintos:

     — Não me arrependo, seu fim foi o alívio de meio mundo.

     Bentinho, pressentindo o perigo, pegou José pelo braço

     — Doutor, eu sei o que o senhor está passando. Posso ajudar. É a mulher diaba que está te atormentando.

     José  arregalou os olhos

     — Consegue ver a bruxa? Eu não suporto mais viver assim, prefiro a boa hora da morte.

     — Não diga isto doutor, seja forte, não se entregue

     Catarina, irritada com a intromissão, de um só golpe derrubou a prateleira de bebidas

     — É muito tarde meu amigo, muito tarde e estou cansado. Perdi as forças.

     A dor aguda atravessou o peito de José. Sentiu náuseas fortíssimas e a visão tornou-se cada vez mais turva. Escorregou até o chão amparado por Bentinho, tocou a serragem que cobria o piso com carinho e sorriu. Riu a risada dos ébrios. Enfartou, para deleite da alma penada que o aguardava na esquina. 

     Alguns juram que ainda hoje escutam as discussões dos amantes pelas encruzilhadas das ruas escuras. O som dos passos de Cataria, ressoando nos paralelepípedos, assombra as madrugadas dos boêmios e contribuem para o folclore local, tornando o lugar ainda mais atraente.

      
 
 
 
     (revisão  – V.)  
 
 
 
nota: Um delírio, um conto soprado pela inspiração de Nelson Rodrigues, ainda que nem em sonhos, chegue aos seus pés. A homenagem ao mestre, com carinho.

Giselle Sato
Enviado por Giselle Sato em 01/12/2009
Reeditado em 26/12/2009
Código do texto: T1954680
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