Música Três

O reflexo das luzes batiam no carro. Emílio estava cansado, eram duas horas da manhã e acabara de sair do hospital. A residência era cansativa, muito cansativa aliás, mas valia a pena. Eram os primeiros frutos de sua carreira profissional como medico.

Fazia apenas três meses que havia se mudado para aquela cidade, mesmo assim já havia se acostumado com o transito dela. E deslizava seu carro pelas ruas da cidade, como se houvesse nascido lá. Era já um ritual que executava todas as madrugadas ao sair do hospital. Estressado e muito cansado, passeava pelas ruas da cidade. Sem rumo, vagava. O som do motor e a visão das ruas levava seus pensamentos à outros lugares. Era uma terapia catártica onde ele retirava de sua mente todas as preocupações e pesos de sua vida de médico iniciante.

Porem, estas voltas de carro tiveram como intenção o relaxamento da mente só no primeiro mês. Logo no iniciar do seu segundo mês de residência, em uma de suas voltas noturnas pelas ruas da cidade, Emílio reparou em um corpo que chamou-lhe a atenção. A pele de um bronzeado estonteante, os cabelos amarelos da tonalidade só encontrada nas atrizes de filme pornô, esta idéia era acentuada pelas raízes do cabelo que eram escuras. Suas vestimentas eram um top verde que deixava a mostra sua barriga bem desenhada e um short minúsculo, que além de mostrar a polpa de suas nádegas era a peça que caracterizava aquela mulher. Prontamente Emílio percebeu que o short era a mulher em si. E repetidas vezes aquela semana, cruzou com aquela mulher. Sua vulgaridade ao invés de espantar atraia-o cada vez mais. E com o passar dos dias ele começou a acreditar que ela lhe direcionava olhares.

Alguns dias depois ele saiu decidido, iria chamá-la para dar uma volta em seu carro. Alguns minutos andando por ruas as quais já tinha visto ela passar, e subitamente o momento que esperava ocorreu. Lá estava ela, desta vez com uma blusinha preta que mostrava somente metade de sua barriga, os cabelos presos como um rabo de cavalo e o mesmo short de sempre. Sim ele tinha certeza o short era a mulher em si.

Aos poucos ele foi tirando o pé do acelerador e vagarosamente aproximou o carro dela. Ela olhou para ele, aquele olhar felino e carregado de sensualidade que as mulheres mais vulgares possuem. Ele tímido e ao mesmo tempo excitado falou:

- Oi ... – O carro andando vagarosamente, acompanhando os passos dela.

- Oi – Emílio ficou assustado. Esperava que ela se insinuasse quando eles começassem a conversar, mas pelo contrario ela simplesmente respondeu o cumprimento com cortesia. Sua mente tentava pensar em algo, mas o nervoso de estar perto daquela mulher fazia com que seus pensamentos não tivessem uma linha de raciocínio coerente. E descuidando do controle da velocidade do carro ele sente um forte solavanco, seguindo das luzes acessas do painel. O carro tinha morrido. Ao olhar para ela, percebe que ela esboça um leve sorriso e continua andando, dessa vez seu rebolado parece mais forçado que o normal.

Enquanto Emílio com a cabeça no volante e o carro parado pensa em como ele é um idiota, a mulher continua caminhando e alguns instantes depois entra em um carro que a aborda logo a frente. Triste ele liga o motor do carro, sai em alta velocidade. Nessa noite não haveria espécie alguma de relaxamento pós-residência, somente o peso de sentir-se um derrotado.

Alguns dias depois em uma das raras noites de folga da residência. Ao sair de uma loja de conveniências do posto de gasolina que costumava freqüentar Emílio percebe ‘a mulher que era um short’ dentro de um carro que estava abastecendo. Forçando o olho, ele percebe que o sujeito ao volante brinca nas coxas delas. Uma idéia repentina o domina, segui-los. Ele entra em seu carro e como nos filmes de detetive finge procurar algo no porta luvas, atento ao momento em que o sujeito da a partida e sai do posto. Prontamente ele segue o carro. Acredita manter uma distancia segura do outro carro, mas não está com plena confiança quanto a isso. Afinal nunca seguiu um carro em sua vida antes. Mesmo preocupado e tenso a principio parece-lhe fácil. Ainda existem carros vagando pelas avenidas e ruas, o que trás a sensação de que ele não vai ser descoberto. Mas à medida que o sujeito em questão direciona-se para ruas menos obvias e aproxima-se mais dos subúrbios da cidade, ele percebe que deve manter uma distancia maior. Finalmente quando o carro entra em uma estrada que leva a zona rural, Emílio percebe a necessidade de apagar as lanternas do carro. Em sua cabeça a idéia de que aquela é a maior loucura que já fez na vida lateja incessantemente. E se o sujeito estiver armado? E se for tudo uma manobra de seqüestradores, interessados em sua pessoa? Estas e milhares de outras duvidas pairam sobre seus pensamentos, mas a obsessão por aquela mulher é mais forte.

O sujeito vira o carro em uma estrada de terra transversal a principal. Não ser notado ali será algo difícil, percebe Emílio. O carro a frente pára próximo a uma porteira de fazenda. Emílio prontamente percebe que será melhor seguir em frente e fingir que é um morador daquelas bandas. Ao passar pelo carro parado segura com todas as suas forças o impulso de olhar para ela e ver o que ela estará fazendo. E depois de andar alguns metros a frente, ele pára o carro. Tranca o carro, mas não ativa o alarme com medo de chamar a atenção. Tentando ser o mais furtivo possível ele entra pela cerca de arame e vai por dentro da propriedade caminhando com as costas curvadas, procurando um local em que possa ver o carro. Encontra um pequeno barranco, onde se deita e observa. Não consegue ver o que esta se passando dentro do carro, mas é adulto o bastante para perceber. O chacoalhar leve e ritmado do carro, o esfumaçar das janelas e principalmente o som dos gemidos. No silêncio da madrugada ele chora.

II

No Dia seguinte, após sair do hospital, dirigiu-se até a loja de conveniência novamente. Comprou um saco da batatas fritas e uma garrafa de refrigerante, e ao perceber que estava só com o atendente resolver perguntar:

- Escuta amigo, costumo perceber um loira sabe? Tingida. Que sempre usa um shortinho minúsculo. – Ao falar do short ele vê a fisionomia do atendente mudar, de uma pessoa pensativa para alguém que finalmente sabe de quem se esta falando. Emílio sorri, era a prova de que o short realmente representava aquela mulher como um todo. O atendente fala:

- Então, por incrível que pareça ela não é prostituta não. Pelo menos não nos moldes da prostituição normal. Ela é do tipo de sem vergonha que sai com todo mundo e vai para a cama com qualquer um. Dizem que o único pedido dela é que a levem para casa depois. –

Emílio achou estranho toda aquela historia, mas como estava ressentido do ultimo acontecido resolveu voltar para a casa e dormir.

Por mais três noites manteve o controle ante a obsessão da garota que era um short. Porem aquela noite ao cruzar com ela percebeu que ela realmente nunca deveria tirar aquele único short que sempre usava. O short demarcava de maneira sensual suas nádegas rijas e dava a ela uma peculiaridade singular. Encheu-se de coragem parou o carro do lado dela e foi peremptório:

-Entra aí minha loira. – Ela sorriu e entrou, beijou-lhe na face e perguntou.

- Que nos vamos fazer? – A maneira dela falar era horrível. Emílio começou a imaginar por onde aquela mulher tinha andado a vida toda. Resolveu então tomar uma postura mais séria com ela e ao invés de chamá-la para um lugar escuro e fazerem sexo, tomou a decisão de levá-la para comer algo.

Levou o carro para um drive-thru. Pediu sanduíches e refrigerante e parou o carro logo a frente e perguntou:

- Quer ouvir alguma coisa? Tenho alguns Cds aqui. Que tipo de musica você gosta?

- Funk. Adoro Funk eu danço sabe? Quero ser dançarina.

Emílio sentiu tristeza, ao saber que ainda existiam sonhos naquela mulher. Ela tinha um corpo escultural é verdade, mas não possuía o tratamento de estirpe das outras mulheres. Olhando mais de perto ele podia ver que sua pele tinha manchas e seus dentes eram tortos. De um forte sentimento sexual o coração de Emílio passou para um misto de dó e vontade de proteger e auxiliar essa mulher. Observava ela comer, não tinha modos refinados, comia como uma criança que ainda não foi presa pelas grades da boa educação.

Após comerem em silêncio, ele a olhá-la e ela a devorar com vontade pueril o sanduíche, foram dar algumas voltas de carro, Emílio ligou o CD do carro, tocava seu cd do Chico Buarque, a mulher pareceu não gostar muito do tipo de musica mas mesmo assim Emílio acreditou que seria interessante ela conhecer musica de qualidade.

Parou novamente o carro, agora era hora de beijá-la, colocou a mão sobre suas coxas e avançou com o rosto na direção do rosto dela. Quando os lábios estavam bem próximos a ponto de sentirem o hálito um do outro, ela recuou.

- Não posso beijar.

- Mas! Porque? – Emílio sentia-se ultrajado, ela era uma mulher das ruas sabia disso, mas porque não queria beijá-lo? Estava estupefato.

- Você me deixa no centro? – pediu a mulher, aparentando certo nervosismo.

- Ok, eu te deixo. – Falou Emílio sem entender o que estava acontecendo.

Enquanto dirigia, resolveu conversar sobre qualquer coisa com ela, para não pensar na recusa que acabara de receber de alguém que não costumava dar recusas.

- Quer levar algumas musicas dessas para ouvir? Deixo meu MP3 com você. Assim tenho desculpas para te ver de novo. – Falou Emílio emboçando um daqueles sorrisos que só os homens nos momentos de gracejo e cortejo são capazes de dar.

- Tudo bem. Quero sim. – Respondeu ela com um sorriso.

Emílio entregou o MP3 para ela e deixou-a no centro da cidade. Num misto de raiva e decepção não entendia porque havia sido recusado por uma mulher que não costumava recusar ninguém. E com esses pensamentos foi dirigindo para sua casa. No meio do caminho sentiu raiva de ter dado seu MP3 para ela. Com toda certeza ela iria deletar suas musicas e encher aquele aparelho com musicas vulgares como ela. E assim foi dormir com os pensamentos em ódio por ter sido recusado por uma mulher da rua.

III

Dias depois, em suas andanças pelas ruas da cidade encontrou a mulher novamente. Mais uma vez o short é o seu expoente. Realmente se duas coisas nasceram uma para a outra, essas coisas eram aquela mulher e aquele short. Os dois juntos formavam um verdadeiro avatar da vulgaridade.

Emílio parou o carro perto dela e falou:

- Entra aí, loira! - Ela com um sorriso abriu a porta e sentou-se no carro. Cheirava a perfume vagabundo e mascava novamente um chiclete.

- Como você está? Ouviu as musicas que te dei?

- Ouvi.

- De qual gostou mais? – Emílio perguntou com ares de maldade, sabendo que ela não ouviu as musicas, e mesmo que tivesse ouvido não teria capacidade para apreciá-las pensava ele.

- Gostei da musica três.

- Do que ela fala? – Emílio tentava lembrar-se qual musica era a numero três, mesmo assim tinha certeza de que ela estava só tentando-lhe enganar.

- Há! Não sei explicar... Sei que gostaria de falar aquelas coisas... Sei lá. Que vamos fazer hoje? – Emílio sabia, ela não tinha ouvido as musicas estava mudando de assunto. Mas tudo bem pensou ele.

- Vamos assistir um filme. – Nem mesmo Emílio sabia porque tinha dito isso. Só sabia que logo estava entrando em sua casa com ela.

Colocou um filme qualquer no DVD, sua idéia não era assistir o filme. Sentou-se com ela no sofá e começou a acariciar-lhe a cabeça, ela então deitou no sofá, mais no seu colo que no sofá e ficou sorrindo a receber os carinhos que talvez nunca recebera de um homem. Emílio afagava-lhe o corpo, passando as mãos por suas costas. Sentia que ela gostava da sua mão em seu corpo, portanto foi avançando nas caricias e começou a tocar-lhe os seios, percebia o sorriso no rosto da mulher. Apertava-lhe os seios com carinho sentia os rijos e macios, com a outra mão desceu para o short, desabotoou e avançou a mão, tocou-lhe o sexo, percebia pelo frenesi de seu corpo que a mulher estava com vontade. Mudando de posição foi beijá-la, dessa vez ele sabia que não seria repudiado. Mas para sua surpresa novamente ele virou-lhe o rosto e com estupidez saiu do sofá e levantou.

- Eu não posso te beijar, eu posso ter nada com você. Eu não sou uma vagabunda qualquer!- Esbravejou a mulher com o short ainda aberto e a calcinha de renda barata a mostra.

- Porque não? Sua vagabunda, você sai com qualquer um mesmo! Eu sou pior que os miseráveis com quem você se deita por aí? – Emílio gritava, com uma raiva sem medidas, sentia-se humilhado, ele tinha tratado-a de maneira diferente, tinha a levado para casa, tinha alimentado-a, não queria só sexo. Queria protegê-la, queria... queria... Quando ouviu os passos rápidos dela a correr para fora da casa chorando, foi que Emílio percebeu que ele também só queria ter ido para cama com ela, ele não era diferente dos outros, era só um canalha com uma mascara de humanidade, ele era um canalha hipócrita e com esta dolorida descoberta desabou no sofá a chorar.

IV

Lembrando-se desse ocorrido, lá estava ele a vagar pelas ruas da cidade durante a madrugada. Não sabia mais porque voltara a procurar aquela mulher. Talvez para se redimir, pedir desculpas algo do gênero. Porem a dias rodava sem encontrá-la.

Virando uma esquina, encontrou uma corja de vagabundos em forma de roda, achou estranho e diminuindo a velocidade do carro observou melhor. O coração veio-lhe a boca, estirado no chão estava o short, sim, aquele short dono da mulher vulgar que ele estava a procurar. Parou o carro no meio da rua, empurrou os vagabundo que cercavam a mulher, ela estava ali, estirada no chão babando e com os olhos virados, o corpo rijo. Não sabendo porque Emílio como num ato reflexo pegou seu MP3 que estava no bolso da frente do short da mulher e colocou em seu bolso, enquanto tomava as atitudes necessárias aos primeiros-socorros da mulher. Após tomar tais medidas já podendo agir colocou-a no carro e correu para o hospital onde trabalhava. Entrou aos berros pedindo que seus colegas de trabalho a atendessem prontamente. Colocaram-na em uma maca e levaram-na para dentro do hospital. Emílio foi impedido de seguir com eles devido ao seu estado de nervosismo.

Não sabe quantas horas ficou esperando na recepção do hospital. Só sabe que enquanto esperava apertava com força aquele aparelho de MP3 que tinha deixado com ela e havia pegado de volta num momento tão trágico.

Um colega medico mais velho vem para perto dele e fala:

- Emílio não pudemos fazer nada em relação àquela mulher, ela tinha um nível muito alto de cocaína no sangue e infelizmente morreu de overdose. Onde você a encontrou?

- Estava deitada na rua. – balbuciou Emílio com um choro engasgado na garganta.

- Não fique assim, você fez o que pode. Alem disso ela era HIV positivo.

Emílio sentiu sua espinha gelar, sabia ser impossível, mas sentira que seu coração parara de bater por alguns segundos para posteriormente voltar a bater com toda força.

Colocou o fone do MP3 no ouvido e tremendo apertou os botões do aparelho para chegar a musica numero três. Ao ouvir os primeiros acordes reconheceu a musica: “Sob Medida” do Chico Buarque.

Ele entendera então o porque de ser recusado por ela, ele possuía uma ultima mensagem daquela mulher na voz de Chico e chorou como nenhum canalha jamais chorou na vida.

Luís Figueiredo
Enviado por Luís Figueiredo em 01/12/2009
Código do texto: T1953802
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