Janelas (parte 1)
1.
‘Eu sou só um medíocre secretário de escola’ ele pensa. ‘Medíocre seria a palavra correta?’ ele abre o Internet Explorer, entra no Google e pesquisa a palavra medíocre. O Google responde que medíocre quer dizer ordinário, comum. ‘Eu não sou nem isso, sou menos que isso. Ser comum é ser algo bom ainda, sou cercado de pessoas comuns, sou pior que elas. Extraordinário é um cara fora do comum, como o Saramago. Eu sou abaixo do ordinário, sou muito menos que isso. Existe uma palavra que me defina? Acho que não, nem para isso presto.’
Ele termina de fechar o salário dos professores, efetivos e substitutos. Logo poderá sair da escola, vai para sua casa. Ele mora sozinho, uma casa pequena, conjunto de habitação, um quarto, cozinha e sala juntas, um banheiro e vasto terreno vazio para construir. Vê crianças brincando na sua rua. ‘O Brasil é o país do futebol, crianças jogam até em ladeiras. A rua da minha casa é uma ladeira. Minha vida é uma ladeira, direto para o fundo do poço.’ Entra em casa. Solidão. Prepara seu próprio café, forte, pouco açúcar. ‘se a vida não é doce, porque o café haveria de ser?’. Pão amanhecido na mesa, passa manteiga e tosta em uma frigideira. Resolve deixar para lavar a louça depois. Senta-se a mesa, mastiga o pão, molha-o dentro da boca engolindo café, a massa de pão molhado de café desmancha-se no céu da boca. Abre o livro que está lendo O Homem Duplicado de José Saramago. ‘Ninguém me duplicaria, mas eu mesmo não sou nada, duplicar-me seria criar outro eu igual a mim. O que eu faço é diferente.’ Olha no relógio: sete e meia. Fecha o livro. Senta-se na cadeira de espaldar largo e macio, liga o computador. ‘Windows. Não existe melhor nome do que este u-in-do-us. Ja-ne-las, nada mais que isso. São janelas, janelas para as almas de outras pessoas. Eu sou vazio, não tenho alma. Tive de criar quatro almas para mim. Se eu nascesse em outra época, sem computador, já teria morrido louco, ou gênio, poderia ter criado heterônimos e ser estudado nas aulas de literatura como Fernando Pessoa. Mas ele foi extraordinário, como Saramago. Eu sou abaixo do comum. Eu não chego a ser ninguém, sou vazio’.
Clica no ícone da conexão de banda larga, ouve o indefinível barulho de conexão. Pronto, não sei quantos mil kbps seja lá o que for isso. ‘setenta reais mensais por uma conexão de banda larga, se eles soubessem o quanto isso faz bem para mim cobrariam muito mais. Espanhóis mercenários.’
Entra no bate papo. Dentre sete e meia até as oito é o horário que o senhor Astolfo entra na net. Conecta o MSN, possito_astolfo@hotmail.com. Status: conectado. Nenhum dos três contatos online. ‘Nenhum deles vingou. Mas não posso desistir’. Entra na sala brasileiros no exterior. 31 pessoas:
Astolfo entra.
Paty_cucci sai da sala.
Astolfo (reservadamente) fala para Valquíria: oi. Poderíamos teclar.
Valquíria (reservadamente) fala para Astolfo: claro. Quantos anos.
Astolfo (reservadamente) fala para Valquiria: olha minha filha, tenho 70 anos. Você entende de computadores?
Valquíria (reservadamente) fala para Astolfo: Rs. Um pouco, qual o problema com o senhor?
Gostoso_cam fala para todos: alguém afim de tc na cam?
Astolfo (reservadamente) fala para Valquíria: tenho um filho no exterior ele está fazendo mestrado na Argélia. Entrei no msn como combinado com ele. Mas ele está vermelhinho e não responde. Então pensei que ele não deve estar lá. Mexendo cheguei aqui e pensei que podia achá-lo.
Valquíria (reservadamente) fala para Astolfo: Rs. Se está vermelho ele deve estar ocupado. Logo ele fala com o senhor.
Astolfo (reservadamente) fala para Valquíria: entendi. Não quer falar comigo moça? Se eu ficar parado aqui esperando vai me dar sono.
Passivo_NY fala para todos: alguém de NY afim de um real?
Astolfo (reservadamente) fala para Valquíria: porque essas pessoas falam comigo?
Valquíria (reservadamente) fala para Astolfo: que pessoas?
Astolfo (reservadamente) fala para Valquíria: Passivo_NY. é veado ele não é?
Valquíria (reservadamente) fala para Astolfo: deve ser. RS.
Astolfo (reservadamente) fala para Valquíria: Porque você não me coloca no MSN. Daí podemos conversar por lá. Assim eu passo o tempo.
Um minuto sem resposta. ‘Minha última chance’.
Astolfo (reservadamente) fala para Valquíria: meu endereço é possito_astolfo@hotmail.com.br
Astolfo sai da sala.
‘o br no final vai demonstrar que ele realmente é velho e não entende direito de informática.’ Ele espera um tempo, ansioso para que Valquíria o adicione. Logo a janela eclode na tela: Leticia_carinhosa64@hotmail.com.
Ele aceita. Na janela da foto dela uma mulher de uns 46 anos. Somente o rosto dela aparece. ‘Deve ser gorda, pessoas gordas geralmente colocam fotos só do rosto’.
Leticia diz: Oi senhor Astolfo tudo bom?
Astolfo diz: Tudo. Achei que você não ia me colocar aqui.
Letícia diz: não tem aquele br no final. Algumas pessoas podem não te adicionar por causa disso.
Astolfo: eu sempre confundo essas coisas. Tem hora que tem br tem hora que não tem. Não entendo nada disso.
Letícia diz: tudo bem. Mas então, seu filho ainda não respondeu?
Astolfo diz: não. Eu to vendo a foto dele aqui, em volta está vermelho mas não sei porque ele não responde.
Letícia diz: já te falei ele deve estar ocupado.
Astolfo diz: sabe só uso essa porcaria aqui porque fica mais barato que ligar para eles. Se não nem tinha aprendido a mexer nessa porcaria.
Letícia diz: que isso. O senhor sabe usar muito bem. Até na sala de bate papo conseguiu entrar. Não é qqr um da idade do senhor que entraria lá assim sozinho, sem ajuda alguma.
Astolfo diz: obrigado. Mas então que você faz por aqui. Se está na sala brasileiros no exterior é porque não está no Brasil, ou estava procurando alguém como eu estava?
Letícia diz: RS. Na verdade eu estava lá só para papear mesmo. Sou do interior de minas gerais.
Astolfo diz: mas você não tem conhecido no exterior?
Letícia diz: não. Estava aqui mais para conversar com alguém mesmo.
Astolfo diz: olha filha. Se não quiser perder tempo com um velho como eu, pode deixar de falar comigo viu. Não quero te atrapalhar.
Letícia diz: que isso. Não sei pq mas gostei do senhor.
Astolfo diz: então pode não me chamar de senhor.
Letícia diz: RS.
Astolfo diz: mas então, tem filhos?
Letícia diz: não. Meu marido não pode ter filhos.
Astolfo diz: entendo. Mas você tem vontade de ter filhos?
Letícia diz: sim. Muita.
Astolfo diz: nossa! Então deve ser complicado para você aceitar isso não é?
Letícia diz: sim. Muito. Alias estamos vivendo um momento difícil sabe.
Astolfo diz: todos os relacionamentos tem momentos difíceis. Eu e minha mulher passamos por muitas dificuldades. Pensei muitas vezes que não dava mais certo. Mas um dia ou outro ela me alegrava com o jeito dela e eu percebia que valia a pena.
Letícia diz: que bonito. Ela tbm conversa com o seu filho pelo computador?
Astolfo diz: não. Infelizmente ela faleceu a um ano. Pouco tempo antes do Daniel embarcar para a Argélia.
Letícia diz: meus pêsames.
Astolfo diz: no começo foi difícil, mas já estou aceitando bem melhor.
Letícia diz: acho que é isso que falta no meu relacionamento. No fundo penso q não nos amamos, ou por não termos um filho para nos mantermos unidos estamos a cada dia nos afastando mais.
Astolfo diz: Olha filhos são muito bons para manter um relacionamento, mas acho que se vocês se gostam mesmo. Tudo vai dar certo sabe. Desejo o melhor para você.
Letícia diz: muito obrigado.
Astolfo diz: querida, tenho que sair agora. Acho que meu filho não vai entrar mesmo e não tenho paciência para ficar aqui muito tempo. Não que nossa conversa não esteja boa, mas me cansa ficar aqui, força muito minha vista.
Letícia diz: tudo bem. Tchau.
Asfolfo diz: até mais.
Ele olha no relógio novamente, são oito e dezoito. ‘melhor lavar a porcaria da louça. Depois eu volto aqui’. Sai do MSN, deixa o computador ligado. Começa a lavar a louça, ouve o baralho na rua, os vizinhos escutam algum sertanejo nojento que está na moda. Ele odeio pessoas, ele não sabe definir o que é, ele não sabe quem ele é, só sabe que criou uma família mental e que estas pessoas existem de maneira virtual. Essas pessoas só existem para que ele possa retirar das outras suas historias, seus medos, suas aflições. ‘A internet é uma mascara, uma mascara pra cobrimos o rosto e mostrarmos quem realmente somos. Isso é paradoxal, quando podemos esconder a nossa face começamos a mostrar o que a dentro de nós.’ As outras pessoas mostram suas almas para ele. Ele não mostra nada para elas, não tem o que mostrar. Ele mostra quatro pessoas que ele criou. Quatro pessoas que não são ele. Ele não é ninguém.
A louça está limpa e guardada. Pega um chocolate para comer. Volta a sentar na cadeira, na tela quatro quadrados cada um de uma cor passeiam por um fundo negro. Ele adora aquele desenho, aquilo para ele é mais que um desenho. É um símbolo. JANELAS.
Joh_dark@hotmail.com. Status: online.
Dos quize contatos um está online. É o que ele precisa.
Joana diz: Oi.
Mauricio: Oi. Quem é vc?
Joana diz: me chamo Joana. Encontrei vc em um fórum de filosofia, adorei seus comentários. Daí achei seu Orkut e tomei a liberdade de te adicionar no MSN.
Mauricio deve ter uns quarenta anos, lembra um pouco o Nicolas Cage. ‘Um homem dessa idade não vai se abrir para uma menina de vinte e dois anos, melhor eu começar me abrindo e depois sugar as historias dele’.
Joana diz: então adorei seus comentários. Vc é muito inteligente.
Mauricio diz: muito obrigado. Gosta de filosofia?
Joana diz: adoro. Meu sonho era fazer faculdade de filosofia. Mas meu padrasto me obriga a fazer faculdade de direito. Odeio isso.
Mauricio diz: as pessoas devem fazer o que gostam. Mas se seu padrasto pode pagar para vc uma faculdade de direito é melhor vc aproveitar. E se não me engano na faculdade de direito vc tem aulas de filosofia não tem? Acho que tbm de antropologia. Estou errado?
Joana diz: nem um pouco. Mas mesmo assim. Filósofos contribuem muito mais para um mundo melhor que os advogados.
Mauricio diz: RS. Concordo com vc. Mas mesmo assim depois de formada vc pode fazer o que deseja.
Joana diz: depois de formada já terei caminhado muito de por um caminho que não quero seguir. Mas daí será tarde e não sei se vou ter pique para voltar e começar do zero.
Mauricio diz: se realmente gosta de filosofia e é isso que quer acabará correndo atrás.
Ele levanta-se, serve-se de café. Volta para o computador.
Mauricio diz: vc tbm pode ser amante da filosofia sem trabalhar com isso. Eu trabalho em uma empresa de softwares. E não deixo de filosofar. Entende?
‘É isso. Conforme a Joana for falando de si ele vai se abrir cada vez mais’.
Joana diz: Isso é verdade. Mas sei lá. Minha vida anda uma bagunça. Ando muito perdida. Ler coisas da filosofia me fazem melhor, mais forte. Não sei...
Mauricio diz: O que te aflige linda? Quer se abrir comigo? E que mal lhe pergunte, quantos anos vc tem?
Joana diz: tenho 22 anos. E obrigada pelo linda. Huieauiehea.
Mauricio diz: vc é realmente muito linda. Adorei essa sua foto sorrindo na praia.
‘Muito boa minha escolha. Sabia que essa menina ia chamar atenção.’ Ele entra em um fotoblog. É de lá que ele tira as fotos. Um longo estudo foi feito antes de ele escolher a menina que representaria Joana. Ele tem o fotolog e o Orkut da menina adicionado aos seus favoritos no Internet Explorer. Assim é servido quase que mensalmente de novas fotos para dar mais verossimilhança a sua Joana. A conversa continua.
Joana diz: foi de quando fomos para natal. Estava sorrindo mais odiei essa porcaria de viagem.
Mauricio diz: mas deus do céu como uma menina tão linda e jovem como vc pode ser tão amargurada com a vida?
Joana diz: ser jovem e bonita não necessariamente são requisitos para a felicidade. Alias enquanto houver vontade haverá sofrimento. Não era isso o velho schop falava.
Mauricio diz: RS. Adorei sua intimidade com o Schopenhauer. Foi meus comentários sobre ele que lhe chamaram a atenção?
Joana diz: isso mesmo. Adoro Schopenhauer. As vezes penso em me matar. Sei lá. A vida é muito cruel, as pessoas são sujas. Odeio o ser-humano.
‘Ele deve estar pensando que isso é só frescura de uma jovem mas como na foto ela é bonita ele vai continuar. Eu aposto. ’
Mauricio diz: Se vc pudesse se abrir quem sabe eu poderia lhe ajudar.
Joana diz: tudo bem. é uma longa história mas vou contar. Quando meu pai morreu, ficamos muito pobres. Com o tempo minha mãe conheceu um babaca, promotor, cheio da grana. Eles estão se casaram. Tenho um carro para mim, ele me paga faculdade, curso de inglês e tudo mais. Mas eu sei de coração que minha mãe não gosta dele. Minha mãe se tornou uma prostituta. Uma prostituta de luxo. Pior que qualquer outra ele esta vendendo sua dignidade pelo bem dos filhos.
Mauricio diz: nossa. Vc tem sérios problemas em relação a sua mãe.
Joana diz: tenho mesmo. E pior ainda é meu irmão mais novo. Ele não percebe o q realmente ocorre e adora o babaca.
Mauricio diz: mas será que sua atitude não tem muito a ver com sua relação com seu pai? Não seria isso ciúmes?
Joana diz: não. Ele não faz bem para minha mãe. Eu acho que ele trai ela, ele demora a chegar as vezes, já vi minha mãe chorando pelos cantos da casa. Ela anda bebendo.
Mauricio diz: complicado essas coisas.
Joana diz: são mesmo. Não vejo a hora de me formar e sumir dessa porcaria de casa. A prostituta e meu irmão covarde que fiquem aqui. Assim que possível saio dessa merda toda.
Mauricio diz: olha menina. Estas coisas de família são extremamente complicadas. Eu tbm tive muitos problemas com meus pais. Posso te contar em outra hora. Pois tenho que trabalhar um pouco e com o MSN aberto acabo não fazendo nada.
Joana diz: tudo bem. olha adorei teclar com vc.
Mauricio diz: eu tbm gostei muito de vc menina. Poderemos teclar melhor em outra hora.
Joana diz: por mim tudo bem. bjs.
Mauricio diz: bjs. Até mais.
Mauricio fica offline. Ele também sai da internet. Está cansado, resolve ler um pouco e dormir. Amanha tem que trabalhar e a noite como sempre JANELAS. Ele lê pouco e dorme pesado em sua cama. A solidão da casa o envolve.
2
Ele está no ônibus a caminho da escola. Guaratinguetá é uma cidade pequena, mas a escola fica do outro lado da cidade são dois ônibus: casa-rodoviária rodoviária-escola. Senta-se ao lado de uma mulher, a mulher não olha para ele. Ninguém olha, ele é uma pessoa inócua. Quando estudava era do tipo que se faltasse ninguém reparava. ‘não faço diferença no mundo’. Na escola tem de organizar uns papeis. A burocracia é algo que só se presta atenção quando ela te atrapalha. Ele é eficiente no serviço, portanto nem devido aos erros ele é lembrado. Ele não comete erros no trabalho. Rapidamente organiza tudo. Logo está com tempo ocioso. ‘Se o governo não fiscalizasse os computadores, eu poderia ficar na internet aqui. Me sentiria mais vivo.’ Ele pensa que Astolfo a essa hora esta acordando, indo comprar o jornal e pão. Enquanto isso Joana esta em alguma aula chata e desinteressante da faculdade que ela nem ao menos gosta de fazer.
Uma mocinha entra pelo corredor, no balcão ele pede para que ele arrume a papelada para que ela possa dar aula como eventual. Ele passa todas as informações necessárias. Não gosta de cometer erros. As pessoas só tratam com ele o necessário, ninguém fala com ele direito. A mocinha, alta, loira, com um rabo de cavalo bonito e óculos de acrílico vermelho na frente de olhos azuis muito bonitos. Anota tudo que tem que trazer. Quilos e quilos de Xerox e outras coisas mais. A moça reclama da papelada. ‘As pessoas só pedem informações para mim, ou isso ou reclamam. Nada mais.’ A moça coloca as anotações na bolsa, ele vê um chaveiro da Pantera Cor de Rosa, ele esboça um sorriso, mas logo o suprime. Fica nervoso, apreensivo a moça está demorando mais que o normal para sair do balcão. ‘Que mais ela quer?’.
- Nossa! Saramago. Adoro Saramago, já li essa é bom, mas não é um dos melhores dele. – ela fala se apoiando no balcão e sorrindo para ele.
O coração dele dispara. Ele se controla e fala:
- Legal. Eu gosto dele.
- Já leu intermitências da morte?
- Não. - ele esconde as mão embaixo da mesa. Ele arranca uma lasca da madeira da mesa.
- se quiser te empresto. Olha deixa eu ir. – Ela sai mas rapidamente coloca a cabeça de volta pela porta e fala
- Me chamo Helena. Amanha volto com os documentos. – acena e sai.
Ele passa as mãos pelo rosto. Precisa entrar na internet. Olha o relógio e constata que falta muito para o horário do almoço. JANELAS.
Ele percebe o último movimento do ponteiro do relógio anunciando que seu horário de almoço acabara de chegar. Ele se levanta, sai da secretaria e caminhando lentamente passa por dois quarteirões, chega ao restaurante onde sempre almoça. O pequeno restaurante funciona próximo a uma empresa de produtos químicos, ali almoçam toda sorte de trabalhadores. O bairro da escola onde ele trabalha é um desses bairros que surgiram em torno de uma grande empresa para abrigar os trabalhadores. E como a empresa química prosperou na cidade, várias pequenas empresas foram surgindo ali próximas a ela para auxiliá-la. O restaurante tem o estilo dos velhos restaurantes baratos, mesas quadradas de madeira com velhas toalhas mal lavadas. Ele senta-se e pede um PF, tradicionalmente as segundas o prato é composto por arroz, feijão e salsichas. Come com rapidez e logo está na fila, paga sai apressado até lan-house que fica perto da escola.
Conecta-se rapidamente ao MSN dessa vez é o email Daniel_freire86@hotmail.com. Status: conectado.
‘Que bom ela está online’ ele pensa.
Daniel diz: olá querida. Tudo bom?
Sheila diz: tudo sim meu bem.
Daniel diz: então que me conta de novo?
Sheila diz: pois é. Está muito difícil arrumar um emprego aqui. Se continuar desse jeito vou ter q voltar ao Brasil.
Daniel diz: mas não entendo bem. se vc foi para o exterior para conseguir emprego e se enriquecer e não esta conseguindo isso. Não é melhor voltar?
Sheila diz: mais ou menos. Assim, emprego emprego eu até consigo, mas nada que me de muito dinheiro.
Daniel diz: o que seria muito dinheiro para vc?
Sheila diz: nem eu sei dizer. So sei que trabalhando de empregada aqui eu não vou conseguir nada.
Daniel diz: é um emprego digno como qqr outro.
Sheila diz: e como todo emprego digno não dá muito dinheiro
Daniel diz: isso lá é verdade eu sou formado em ciências sócias e cato lata dando aula de sociologia em escola públicas.
Sheila diz: viu só. Mas eu ainda irei dar um jeito nisso tudo. Vc vai ver. Vou ficar rica.
Daniel diz: cuidado para que com sua ambição vc não se enverede por caminhos incorretos.
Sheila diz: e quem disse o que é certo o que é errado? Se vivemos no capitalismo o certo é ficarmos ricos. Os fins justificam os meios disse Sócrates não é?
‘não besta. Quem disso isso foi Maquiavel no seu livro O príncipe. Mas o Daniel é um cara polido, vai deixar isso passar em branco.’
Daniel diz: RS.
Sheila diz: gostou não é meu amor?
Daniel diz: gosto do jeito engraçado com que vc se expressa, mas tenho medo de até onde suas ideologias vão levar. Não quero aqui tecer um pão de socialista formado em ciências sociais, mas sei lá. Pensa bem até onde esse seu enriquecimento pode te levar.
Sheila diz: eu sei amor. Não vou matar ninguém tenha certeza disso.
Daniel diz: cuidado, pode se matar pessoas indiretamente sem se saber, ou sabendo mas negligenciando isso.
Sheila diz: fica calmo.
Daniel diz: olha. Infelizmente agora tenho q sair. Meu horário de almoço está acabando e devo dar a primeira aula.
Sheila diz: boa aula meu professorzinho lindo.
Daniel diz: obrigado e boa sorte em suas empreitadas.
Hora de voltar até a escola. Caminha lentamente, observa os alunos, gosta de olha-los porque para ele aqueles alunos são como animais. ‘eu só ouso os constantes gritos e badernas feitas por eles. Os professores sofrem com esses animais, acho q uma sala de aula deve ser similar a cova dos leões do coliseum.’ Ele passa por entre os alunos que estão no pátio, preparando-se para a aula da tarde. Ele pensa a eterna ladainha de todos os dias ‘ninguém repara em mim. Nenhum deles repara em mim.’ Mas isso não é verdade, alguns alunos percebem a diária presença passando pelo pátio e muitos comentam ‘lá vem o esquisito do secretário’ outros mais abusados falam ‘meu pai disse que ele é louco. Que agora o governo com essa coisa de cotas e de inclusão aceita gente com problema na cabeça para trabalhar. Ele não fala com ninguém.’
Incólume diante desses comentários, ele chega a secretaria senta-se e arruma alguns papeis até o horário de voltar para a casa e passa a tarde imaginando como seria Daniel, o professor de sociologia, em uma sala de aula.
3
‘Finalmente em casa. Hoje é dia de assistir um bom filme e só depois entrar na internet’. Hoje foi abusado, comprou rosbife para comer. Não costuma dar-se a esses luxos mas hoje ele quer saborear algo mais gostoso. Mastiga o pão. Dessa vez o café fica para depois. Com o pão na mão ele vai até sua estante com mais de 200 livros, dispostos em duas estantes de ferro compradas de segunda mão mas pintadas com esmero em um final de semana. Senta-se no sofá, morde o pão e admira sua estante. Deita no sofá e pensa ‘esse sofá de três lugares só serve para que eu possa me deitar. Porque alem de mim mais ninguém sentou-se aqui.’
Termina o pão, bate as migalhas que caíram em seu corpo e no sofá. ‘Quer saber, acho que sou um doente. Todo dia só sei ficar pensando em como sou sozinho e como ninguém repara em mim. Existem pessoas sozinhas que não reclamam disso. Devo aceitar essa condição ou lutar para mudar. Lutar para mudar. Talvez não seja essa a palavra. Amar para mudar. Eu preciso amar. Amar alguém porque já amo minhas coisas. Mauricio entende de amor é melhor a Joana perguntar pra ele. Mas isso depois do filme.’
Reading disc é o que o visor do DVD anuncia. Logo o filme começa, e ele sentado assiste. Mas seu pensamento não está no filme, mas sim no amor. ‘Joana deve demonstrar um pouco de timidez diante de um rapaz que ela gosta, e assim o Mauricio vai ajuda-la.’ Janelas.
Ele acorda. O filme deve ter acabado faz algum tempo, está tonto, dormiu e nem percebeu. Desliga o televisor e o aparelho de DVD. Senta-se na cadeira confortavelmente e liga o computador.
‘Mauricio está online, que bom’.
Joana diz: Oi
Mauricio diz: oi menina. Tudo certo com vc?
Joana diz: pode se dizer que sim.
Mauricio diz: pelo jeito que está falando tem algo acontecendo. Quer me falar?
Joana diz: já se interessou pro alguém? Mas tipo... essa pessoa nem sabe direito quem vc é?
Mauricio diz: já sim. Claro.
Joana diz: e ai? Como foi?
Mauricio diz: tive tantas paixões... meu coração sempre foi meio leviano.
Joana diz: que bonito isso. Sabe passei o dia imaginando que vc deve entender das coisas do coração... hehehehe.
Mauricio diz: Bem. Sou mais velho, já fui casado. Já levei muito não na vida. Mas aprendi a lidar com isso.
Joana diz: então como foi? Sei lá... fale de vc.
Mauricio diz: com minha ex mulher foi mais ou menos assim. Eu achava ela linda, mas ela não reparava em mim. Eu era só um estudante do primeiro ano de faculdade e ela estava já no último ano.
Joana diz: e ai?
Mauricio diz: e ai que sei lá. Um dia eu dei um jeito de me aproximar dela. Falamos sobre filmes. Tudo isso começou pq pelo destino nos encontramos em uma fila de cinema. Parece até historia de filme né?
Joana diz: é. Mas então é pelos gostos comuns que vc se aproximou dela?
Mauricio diz: isso mesmo. Garota vc é tão linda, não seio pq tanta timidez.
Joana diz: sabe. Tem horas que eu não sou eu mesma.
Mauricio diz: sabe o que é engraçado. Começamos nosso papo falando de filosofia e de seus problemas familiares e por fim na segunda vez q nos falamos estamos aqui discutindo o amor.
Joana diz: o amor sempre foi um dos grandes temas da filosofia e literatura.
Mauricio diz: talvez o maior deles não é.
Joana diz: amor e morte eu diria. Os dois grandes temas.
Mauricio diz: realmente. Quem sabe estajam interligados.
Joana diz: uma vez eu li não sei aonde que a vida é uma doença sexualmente transmissível.
Mauricio diz: talvez a vida seja o alto preço que pagamos pelo prazer de nossos pais. O orgasmo deles é duramente pago por nós que a partir de um único instante de gozo alheio temos que viver uma vida toda.
Joana diz: pagamos o prazer com nossa vida dolorida.
‘Dor e prazer. Prazer e dor. Interessante esquema esse. Gostei disso.’
Mauricio diz: Joana, eu já te disse. Se um cara como eu já velho diz que a vida é ruim. Isso é algo compreensível e aceitável. Mas vc jovem e linda.
Joana diz: já falei sobre minha vida. Até conversaria mais, mas estou cansada e acho melhor sair agora. Depois nos falamos. Pode ser?
Mauricio diz: sim querida. Estou sempre e sua disposição.
Joana diz: bjs.
Mauricio diz: bjs.
Ele desliga o computador. ‘Paga-se o prazer com dor, está é uma ótima definição da vida. A natureza é terrível em suas engrenagens. Se sexo não fosse prazeroso ninguém o faria. Alías será que alguém com problemas, alguém que não sinta prazer em fazer sexo o faça? Mas quem sou eu para falar de sexo? O mais próximo que cheguei disso foi me masturbar falando com gordas mulheres que encontrei na internet. É aquela professorinha! Ela está me fazendo pensar em sexo. E assim como minha mãe e me pai me condenaram a uma vida de sofrimento por se entregarem ao prazer eu posso fazer o mesmo, condenar alguém a viver.’ Ele caminha até o hack onde fica o televisor. Ele abre uma gaveta e encontra uma antiga foto. Ele no meio do pai e da mãe, todos sorriem. ‘Eles sorriem porque gozaram e me fizeram nascer, eu sorria porque me ensinaram que deveria ser grato a eles por existir. Que grande esperteza, devemos agradecer aos pais, sermos gratos porque eles sentiram prazer e nós somos obrigados a viver. Somos condenados a uma merda de vida e devemos ser gratos a nossos algozes. Grandes convencionalismos sociais.’ Ele rasga a foto, sai da casa e vai até o quintal que está cheio de mato. ‘Se eu caminhasse pelo quintal não haveria tanto mato aqui.’ Os pedaços de papel voam e se perdem no meio do mato já um tanto alto. Ele volta para a casa senta-se e liga o computador. Entra no Orkut. Fecha os olhos tentando se lembrar do nome da professora. ‘Helena... Helena de tróia... ela vai acabar com meu império...’ ele digita “Helena + Guaratinguetá” 10 páginas de Helenas guaratinguetaenses. 30 minutos depois ele a encontra. Na foto do perfil ela está com um lindo sorriso, a cabeça pendendo para o lado direito e os olhos azuis faiscando como chamas de um fogão através do óculos de acrilico. ‘O azul dos olhos dela é opaco. O que de mais estranho esse azul já viu? Porque esse azul olhou para mim?’. Ele clica na parte das fotos e feliz percebe que ela não as trava. Repara nos álbuns dela: FAMILÍA ‘não’, FACULDADE ‘não’, AMIGOS ‘não’, EUZINHA ‘talvez’, UBATUBA 2008 ‘Este sim’. Ele esboça um sorriso enquanto as páginas da viagem a Ubatuba vão sendo carregadas. Ele vai abrindo algumas nas abas laterais. Ela usa um biquíni vinho, que contrasta com sua pele branca, ele se excita. ‘Ela é real... Ela tem defeitos...’ ele se excita com os defeitos dela, com sua barriga um pouco saliente. Encontra uma foto em que ela se posicionou de lado, ele copia a foto aproxima o Maximo que pode e percebe pequenas marcas de celulite. ‘Helena é real, real assim como eu. Ela tem defeitos...’ Ele abre as calças e começa a se tocar. Fica um bom tempo nessa brincadeira, controlando o gozo que insiste em chegar. Ele vai de foto a foto observando o corpo de Helena, até que, exausto, goza. ‘O orgasmo é o açoite mais poderoso que existe, ele nos condena a viver.’ Se levanta e vai para o banho. Enquanto se banha pensa ‘a masturbação é um ato de piedade, impede o nascimento de uma vida. Salve a humanidade da doença de existir: masturbe-se.’ JANELAS.