O SONHO DE ÍCARO
Ícaro era menino levado. Esperto, inteligente e com grande agilidade física. Na corrida, era um corisco; na copa do arvoredo das ruas da cidade, mais parecia um ganguelinho a saltar e grudar nos galhos e, na Ribeira, nadava e mergulhava como um boto, que por aquelas bandas, não havia.
Saía de casa bem cedo, antes do pai, seu Mané, adotivo e de avançada idade, ir para o trabalho na venda de calçados. O destino: a rua. Estava sempre a procura de algum menino para compartilhar as traquinices.
Uma coisa, porém, vivia-lhe a atormentar os pensamentos: como podiam os pássaros voar? Não entrava em sua cachola... Correr, pular, nadar, era fácil para ele, mas, voar: impossível. Passava horas a observar os pardais, os sanhaços, os sabiás e os beija-flores, esses então, eram de deixar a boca aberta e os olhos vidrados. Pareciam exibir-se e provocar-lhe a inveja de propósito.
Os dias quentes do verão de dezembro anunciavam a proximidade do Natal, época de presentes, de alegria, de sonhar ainda mais com milagres...
Seu Mané, que há muito planejava realizar seu sonho, bem diferente do de Ícaro, enfim, nesse fim de ano conseguiria. Às vésperas do natal, antes do dia do nascimento do Menino Salvador, uma caminhoneta encostou de fronte a sua humilde casinha e descarregou o mágico aparelho. A TV à válvulas, e em preto e branco, adquirida de segunda mão, parecia nova, não fossem os botões desiguais, repostos pelo tempo de uso avançado.
Quando Ícaro chegou, imundo das brincadeiras de moleque, no fim da tarde para, a contra-gosto, tomar seu banho diário, estacou na sala ao ver a televisão em processo de sintonia pelas hábeis mãos do pai.
_ Sente, Ícaro. Já estou quase acabando. Vamos assistir televisão a noite inteira. Após 56 anos, Papai Noel atendeu meu pedido...
O menino obedeceu sem tirar os olhos da tela ainda apagada.
Entre chuviscos e barras pretas passando de baixo para cima, enfim as primeiras imagens foram sendo devoradas.
_ Que é que está passando, papai?
_ É o Capitão Marvel. Um super-herói. Ele ajuda as pessoas e combate os criminosos...
_ Mas ele... ele... ele voa?!
_ Sim, sim. Quando ele diz a palavra “SHAZAN!”,fica com poderes especiais e pode até voar com sua capa mágica. Esse povo de televisão inventa cada uma...
Ícaro nem quis mais olhar o aparelho. A imagem do homem voando com a capa esvoaçante, entre montanhas e acima das árvores, dando rasantes, rodopiando no ar não saiam mais da cabeça.
Seu Mané, agora sintonizando um telejornal, acomoda-se na poltrona de molas, forrada de improviso com um lençol meio roto, azul desbotado, e assiste, satisfeito, às notícias trazidas de longe pela televisão.
Ícaro, por outro lado, trancafiado em seu quarto, sentado em sua caminha sempre desarrumada, de colchão fino e duro, com a cabeça baixa, olhando para o tapete que tinha uma cena de fazenda estampada, com montanhas, casinha, rio e bois pastando, os cotovelos e marcar-lhe a coxa e as mãos sustentando a cabeça pesada de tantos pensamentos, não esquecia a cena do homem voador, o tal Capitão Marvel, com sua capa mágica e que conseguia, como os pássaros, voar, voar por todo o mundo de Deus.
De súbito se levanta. Olha o guarda-roupa de madeira, antigo e forte e a toalha de banho vermelha, ainda seca, pois o banho não era tão urgente, pendurada num prego no batente da porta. A janela aberta, uma brisa fresca entrando, batendo de leve em seu rosto sonhador... – Vou voar também!
Pega da toalha, amarra-lhe caprichosamente no pescoço, e põe-se a escalar o guarda-roupa. Já em cima, respira fundo, olha a janela, como a fazer pontaria, fecha os olhos, com as pálpebras cerradas franzindo-lhe a testa e... – SHAZAN!!! – grita e ao mesmo tempo se joga no abismo do seu quarto...
Sente o vento, agora mais forte, espalhando seus cabelos. A capa, digo, a toalha, tremulante, sustenta seu sonho. Ícaro voa alto e vê, lá embaixo, as luzes da cidade; passa perto da torre da Igreja Matriz, vê as curvas do sinuoso Ribeira, passa perto de uma suindara, veloz, à procura do jantar, as ruas, o campinho de futebol, as árvores, tudo é tão diferente e mais lindo lá de cima... Não sentiu o tempo passar. Logo o sol, inicia sua aparição por trás da montanha, que antes parecia tão alta e, agora, vista de cima, lembrava um montinho de árvores empilhadas. Então, divide o céu com os pássaros que antes invejava. Cumprimenta os sabiás, os bem-te-vis, os sanhaços, as saíras de todas as cores, até que encontra um beija-flor. Este para a sua frente como a desafiar-lhe para fazer o mesmo.
Ícaro, sem pensar, estica o corpo pra cima, tentando parar no ar.
A toalha enrola-se...
O vento não vem mais de frente e sim de baixo... está em queda livre... caindo como um saco de batatas. No desespero, tranca os olhos e grita várias vezes: - Shazan! Shazan! Shazan! e nada...
Então, de repente, uma forte picada no braço esquerdo, o traz de volta ao mundo real. Não sente mais a queda e sim um macio e confortável colchão às suas costas. A voz preocupada e trêmula do seu Mané, pergunta:
- Ele vai ficar bem, doutor?
– Sim, sim. Apenas quebrou um dente e machucou um pouco as costelas. Essas crianças inventam cada brincadeira. Imagina você, pular de cima do guarda-roupa!!!