A Pedra no Caminho

Um dia, caminhando no gramado de um parque, uma pedra voltou-se para cima e disparou: – Por que sequer me pisaste? – Surpreso, virei para trás, a ver quem me chamava. Novamente: – Ei! Por que me passaste o pé por cima, sem nem me tocar? –Atônito, coçando a orelha, olhei – constrangido comigo mesmo – para baixo, procurando o quê de estranho. As pessoas mais próximas eram longe o suficiente para comunicação interpessoal. Havia o que, senão uma pedra, nem tão pequena, cinzenta, semi-enterrada no solo, a apenas uns 30 centímetros do meu calcanhar. Nem gente, nem carro de som, nem mesmo inseto, só uma pedra, irregular e improvável.

Silêncio...

– És mudo ou apenas esnobe?

– Errr... – não sabia mesmo o que dizer; ainda, de olhos arregalados e confuso, tentava fazer-me crer que uma pedra falava comigo.

– Já tinha ouvido falar, mas não sabia que vocês humanos pudessem ser assim, tão esquisitos... Ou orgulhosos! – mesmo sem face, a pedra me transparecia algo que não sabia afirmar se indignação ou escárnio.

Olhei mais uma vez em volta, agora quase convencido de meu absurdo interlocutor, a ver se não havia realmente gente em volta, dessa vez para evitar o vexame certo.

– Errr... – nada em volta, mas... que dizer a uma pedra orgulhosa?

– Ninguém jamais me ignorou dessa forma, se não me respeitam, ao menos me chutam, me arremessam. Não que aprecie esse tipo de tratamento, gosto quando me deixam fazer parte das reuniões, mesmo não tendo eu muito a dizer. Sabe, gosto quando me fazem companhia, quando sentam ao meu lado e passam a manhã, a tarde, o dia, o piquenique, a intimidade...

Será eu ou a pedra o louco da história? Quem ignora quem? – passou por minha cabeça.

– Vocês, pernudos, certamente não imaginam o quanto é difícil ter uma vida ativa, social, dependendo de violências ou tédios alheios para me locomover. Mas sempre me pareceu que vocês, compridos, gostavam de minha companhia, mesmo que tímidos, mesmo sem buscar cumplicidade ou toque.

“Tocar uma pedra, conversar ou travar intimidade com uma pedra!” – quase a interrompi abruptamente chamando-a de louca, mas minha dúvida persistia...

– É bem verdade que por vezes me sinto como o paciente numa enfermaria ignorado pelos médicos imersos em suas conversas, médicas ou não, ou no corredor do hospital esperando longas horas para ser atendido por alguém enquanto os funcionários colocam suas novidades em dia, mas no geral me sinto lisonjeada pelos grupos que acham tão importante fazer suas reuniões cheias de risadas ao meu redor...

Eu já estava imerso na verborragia da pedra, sem nem pensar mais tanto no bizarro da situação. Pasmado, mas curioso para saber onde ela queria chegar eu me achava.

– Ah, mas você deve estar-se perguntando como sei dessas coisas que não são do meu mundo, mundinho cego, surdo, mudo e restrito de pedra, não está? Aviso-lhe logo, então, humano pretensamente esperto: não, não sabes de tudo. Mui diferente de ti, sou muito atenta. Educada e elegantemente atenta; sei escutar, e muito bem, entende?

– Já levara muitas broncas em minha vida, e muitas sem nem saber por que, mas aquilo tudo já passava de qualquer limite razoável. Mas mal tinha tempo de refletir ou elaborar uma resposta.

– Sei bem que o mundo aí fora de vocês não é tão fácil. Melhor, bem distante do fácil; cruel até, eu arriscaria! Sim, olhe melhor, você tão alto, olhe em volta e me diga se não tenho alguma razão! Vocês se gabam tanto de terem pernas, braços, olhos, um cérebro enorme, desproporcional sobre o pobre pescoço que... Acho que o peso é tanto de tantas idéias mirabolantes sobre os ombros que por isso tanto tropeçam e tanto “caem” por cima dos outros!

“O mundo não é fácil, não mas...” – cheguei a esboçar na língua, mas o que me parecia sobrar de juízo fez-me calar (na verdade não sabia nem o que ainda fazia plantado ali, mirando fixamente uma pedra).

– Olha, esse assunto todo já está me aborrecendo – continuou minha minéria nova “amiga” – Eu sei o quanto vocês gostam de mudar de assunto. Diga-me, já assistiu ao último Eastwood em cartaz?

Até que vou ao cinema às vezes – ia muito mais antes – mas mal tive tempo de pensar em responder, aturdido que estava com a mudança improvável de assunto, no meio daquela impensável conversa.

– Tem que ver! Clint é mesmo uma jóia rara. Humm... É como um grandão grisalho de vocês sentado naquele banco ali da praça – cheguei a ver minha amiga cinéfila pétrea apontando para a praça, com bracinhos imaginários – jogando pérolas a, não pombos, mas a porcos que as engolem sem degustar. Deve ser de emocionar poder ir ao cinema e ver algo digno dos mestres antigos, pois não? No meio de tanta porcaria... – cheguei a ouvir-lhe um suave suspiro, travado no meio de tanta dureza – É... gostaria de ir mais ao cinema...

Agora sim, se já não estava, fiquei surpreso.

- Hã? Sim, he! Antes de iniciar tua chacota, saiba que mesmo pedra às vezes tem a chance de frequentar uma sala de cinema, hein?! Quando uma boa alma nos leva preso ao sapato ou mesmo à mão, nunca se sabe. Mas nisso as mais velhas, já miúdas, levam vantagem... – mais um suspiro imaginário e contido – Mas não me julgue sedentária, eu mesmo já fui um par de vezes àquela sala enorme ali do centro, ah já fui sim! Mas isso é outra história... E os casais, ah, os casais! Falam pouco, uma pena, mas eles sim sabem usar bem esses tentáculos, braços e pernas que vocês têm!

“Seria essa pedra capaz até de inveja ou ciúme?” – Pensei eu comigo mesmo...

– Sim, meu caro, eles sim sabem aproveitar o que a natureza bisonhamente lhes deu de sobra. Diferente de outros pernudos como você, sempre correndo, volta e meia tropeçando. Não só em pedras, não só a mim vocês machucam em sua correria despropositada. Olha, essa conversa começou a me cansar. Outros compridos merecem mais da minha atenção e da minha companhia do que você, apressado, violento e orgulhoso. Se não faz o favor de me lançar a outra banda do parque, pelo menos continue sua correria e abre espaço aquele grupo alegre vindo ali. Passar bem!

Saí então zonzo, aturdido, do diálogo mais intenso que já experimentei em toda a minha vida. Nunca havia imaginado participar de um diálogo de tal sorte, sem praticamente também falar. A partir desse dia passei a evitar os parques; as conversas de filas, elevadores ou de cafezinho são muito mais confortáveis.