O VELHO DO RIO
Acordei.
Pela janela do quarto, os primeiros raios do sol a me cutucar as retinas. A cama me abraçando, pedindo para ficar mais um pouco, para não esquecer tão rápido os quentes carinhos da noite. Mas, pus-me sentado.
Olhei a bagunça, estiquei a coluna enrijecida e preguiçosa... O café para fazer e o pão de ontem (ou anteontem?)... Saí sem comer nada.
Talvez, a caminho do Ribeira, ainda antes do mergulho matinal, uma goiaba suculenta, mesmo que bichada, ou as amoras do barranco amainassem aquele incômodo ronco abdominal. Segui. E lá estavam elas penduradas, como que servidas com carinho pelas mãos da dona Goiabeira. Comi vagarosamente umas oito. Nem sobrara espaço para as amoras.
Mais alguns minutos, com os pés calejados estalando no chão batido e seco da rua, e já veria suas águas, sempre apressadas, correndo para o mar, há muito ainda dali.
Mas, para minha surpresa, não ficaria sozinho como sempre. Na praia de cascalho, em frente ao antigo porto das canoas, agachado ou “de cróca”, como diriam os mais antigos, um velho homem, de poucos cabelos e barba volumosa, perdia seu olhar na direção difusa do horizonte, para os lados da Coroa do Meio.
Fingi não vê-lo. Tirei a camisa, àquelas horas já banhada de suor, e atirei-me nas águas incansáveis e frias do rio. Deixei-me, por uns momentos, em seus braços, conduzir levemente correnteza abaixo. Num relance voltei a observar o misterioso homem. Nem um movimento. Parecia hipnotizado pelo vai e vem das marolas e o brilho do espelho d’água refletindo as poucas nuvens espalhadas no céu.
Aprontei-me para sair.
Antes, porém, de garrar o rumo de casa, a curiosidade, me puxando pelo braço, insistiu tanto que não resisti. Acheguei-me meio ressabiado e, educadamente:
- Bom dia!
Não chegou a responder, mas, com um balanço de cabeça, lento, sem se virar, acho que desejou o mesmo.
_ Dia bonito, hoje - tentei de novo.
Enfim, disse algo:
_ Todos os dias são bonitos.
A voz enrouquecida e trêmula me calou a alma.
Tomou a vez novamente, me surpreendendo:
_ Chegue mais que eu não escuto direito.
Atendi prontamente e, um pouco mais à vontade:
_ Está com algum problema, amigo?
_ Eu não, mas eles estão com os dias contados.
Rodei a vista, procurando alguém nos arredores. Nem um perdido cristão por perto. O velho não tirava os olhos do horizonte, lá onde as águas do Ribeira confiavam seus segredos ao pé do ouvido do céu azul.
Remoendo a minha falta de entendimento, arrisquei:
- Parentes seus?
Enfim, a cabeça moveu-se mansamente num sentido giratório. Os olhos úmidos, meio enevoados pelas impiedosas cataratas, agora fazendo dos meus a linha do horizonte, pareciam se antecipar às palavras:
_ Os bichos, as plantas, os rios. Tudo que tem na Terra. Acho que até ela também.
_ Não entendo bem o que quer dizer. – interpelei já impaciente.
Voltando-se novamente para seu cenário predileto, encheu-se do ar fresco trazido pela correnteza e, com um gesto convidativo de mão:
_ Sente aqui que eu conto pra você.
Foi como uma ordem. Obedeci.
_ Os homens não respeitam mais a Mãe - continuou. Desde que nasceram a Mãe sempre cuidou deles. Nunca faltou nada. Tudo Ela deu de sobrar. E eles? Cuspiram no prato que comeram. Viraram a mesa. Mas, a comida que caiu no chão, não volta mais...
Comecei a entrar em sintonia com suas palavras.
_ Tanta inteligência, e acabam se matando. Tanta esperteza e emporcalham a água que bebem. Tanto sentimento e não sentem mais nada. Aliás, logo não vai ter o que se sentir...
Eu agora o entendia perfeitamente, mas, por razão desconhecida, não conseguia entrar na conversa. Não havia frase pra dizer. Nem palavra.
Prosseguiu:
_ Imagine há quanto tempo esse caudaloso rio cumpre seu destino. Abriga seus peixes. Dá de beber a tudo que toca, inclusive a nós. Refresca os dias quentes. E então, recebe da Mãe Terra e pelo poder do Sol, o Pai, que a aquece, seu alimento: a chuva, que cai qual o maná, engrossando seu corpo de serpente e fechando o grande ciclo eterno da vida.
Era muito para aquela manhã, que pensara, seria tão comum como as outras.
Em tom mais suave, chamou minha atenção apontando com um indicador enrugado e caloso que se acabava numa unha grossa e quebradiça, fazendo vez de uma seta precisa:
_ O que vê ali?
_ Uma pedra. - respondi com segurança, desta vez.
_ Pra você é uma pedra, mais pro cascudo que se entocou por baixo dela, é uma linda casa, talvez a melhor da vizinhança.
Levantando, olhou pra cima:
_ E lá, então? - apontando a mesma seta agora para o céu - Milhões de Terras invejam a nossa por não terem vida. Por não terem plantas, nem bichos e nem gente. Mal sabem elas que gente é igual doença pra essa aqui. O pior é que não tem remédio. Só a própria doença pode se curar. Enquanto isso, moribunda, nossa Terra vai agüentando, sem saber até quando...
Enquanto falava, misturei-me com as nuvens, tentando perceber os planetas que se escondiam à luz do sol. Perdi-me, por um momento, que me pareceu infinito, na imensidão azul do céu e, quando voltei, cadê o Velho?
Acho que eu deveria tomar um bom café da manhã antes de sair de casa...