O dia que quiseram salvar a minha alma...

     Há anos, um fanático e bíblico indivíduo veio à minha casa para tentar conquistar-me para a sua seita. Eu estava de bom humor nesse dia e, contra os meus hábitos, deixei-o entrar. Ele danou-se a falar, a cantilena de sempre: a Bíblia era a palavra de Deus e se eu aceitasse Jesus como meu salvador todos os meus pecados seriam perdoados e blá-blá-blá...
     Esgotada a minha paciência - e ela, por si só, já é curtíssima - eu perguntei ao iluminado visitante:
     - Meu caro, essa sua atitude de vir a minha casa para tentar convencer-me dessas coisas é meritória aos olhos de Jesus?
     - Claro, claro, Jesus não quer que se perca uma só ovelha do seu rebanho!
     - Mas eu não sou uma ovelha perdida, meu caro; eu apenas não tenho religião, sou um agnóstico!
     - Pois é, não lê a palavra de Deus e ainda não aceitou Jesus como seu salvador!
     - Mas, meu amigo, Deus não fala em livros escritos por homens nem sempre bem intencionados; por outro lado, eu não aceito Jesus como meu salvador porque ele não veio ao mundo para me salvar!
     - Como pode dizer uma blasfêmia dessas? - horrorizou-se o homem.
     - Claro, meu amigo, quem tem que me salvar sou eu mesmo!
     Assim que o homem acalmou o seu espanto, eu perguntei:
     - Posso contar-lhe uma história sobre Jesus?
     - Sei tudo sobre Jesus! Que pode um renitente pecador contar-me sobre Jesus que eu já não saiba?
     - Mas se você acha que andar por esse mundão de Deus tentando salvar almas como a minha é servir a Jesus, se você não sabe ainda o que mais agrada a Jesus, então, com certeza, não sabe esta história.
     - E o que mais agrada a Jesus, além de salvar almas para ele?
     - Terá que ouvir a minha história...
     O homem irritou-se:
     - Então, conte! Conte!
     Contei.

     No tempo em que Jesus andava pregando a moral evangélica - que se fundava, acima de todas as coisas, no Amor e na Caridade - curando os doentes e tentando extirpar o ódio e o preconceito dos corações dos homens, uma distinta dama o encontrou e pediu-lhe:
     - Por favor, Mestre, quando me dará a honra de cear comigo na minha casa?
     - Irei amanhã, senhora.
     - Ora, que bom, que bom! Vou preparar uma ceia maravilhosa para o senhor, Mestre!
     Então, no outro dia, a respeitável matrona esmerou-se nos mínimos detalhes para preparar um suntuoso banquete para o ilustre visitante. Mandou buscar as melhores carnes e peixes, os melhores frutos e os melhores vinhos, preparou uma bela e colorida mesa, e ficou aguardando a chegada de Jesus.
     Mas Jesus demorava a chegar e a  ansiosa anfitriã começou a se impacientar. De repente, alguém bateu à porta e ela acorreu pressurosa pensando que fosse Jesus. Mas era um mendigo:
     - Senhora, desculpe incomodá-la, mas estou com fome há vários dias. Vejo que está com uma mesa farta, poderia dar-me um pouco para matar a minha fome?
     A senhora nem pensou duas vezes para responder:
     - Tudo que está aí é para Jesus, o ilustre visitante que estou esperando para cear, não posso dar-lhe nada! E vá-se embora, por favor, você está maltrapilho, exalando mau cheiro, não contamine o ambiente que preparei para Jesus!
     O mendigo foi embora e a mulher continuou a esperar por Jesus. Que não veio.
     Dois dias depois, encontrou-se com Jesus e reclamou:
     - Mestre, preparei uma ceia maravilhosa para o senhor, esperei-o o dia inteiro e o senhor não apareceu.
     - Mas eu fui, minha filha.
     - Como?
     - Eu era aquele mendigo a quem você se recusou a saciar a fome.
     - Mas...
     - Eu fui e você não me reconheceu. Em verdade vos digo que isso acontecerá ainda por muitos e muitos séculos.


     Essa foi a história. Mal terminei de contá-la e o sujeito esbravejou:
     - Mas em que capítulo da Bíblia está essa história?
     - Não está na Bíblia, meu amigo. Mas você entendeu a moral da história?
     - Você quer me confundir! Não entendo e nem quero entender o que está fora da Bíblia Sagrada!
     - Então, se você não entende nada de Amor e Caridade, como quer salvar a minha alma? Suma-se da minha frente e nunca mais venha me aporrinhar com essa surrada cantilena de salvações fáceis!

Santiago Cabral
Enviado por Santiago Cabral em 26/11/2009
Reeditado em 15/08/2012
Código do texto: T1944870
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