O marinheiro solitário - parte 2

Os dias foram se arrastando, e Stella sempre mantinha-se um pouco afastada. Ele a via sempre, mas falava com Stella, que passava as noites encostada à proa. No fundo William chegou a sentir pena dela, mas resistiu.

Era início de junho quando uma tempestade incomum começou, e o mar ficou brutalmente agitado. Ficou difícil para William controlar as velas do barco, que estava prestes a virar, e foi então que veio um anjo. Literalmente.

Com uma força descomunal, Stella ajudou William a segurar as cordas e manter firme as velas. Logo a tormenta ficou para trás e ele se viu obrigado a agradecer ao anjo.

— Obrigado — disse meio constrangido.

— De nada — sorriu Stella.

— Vai continuar aqui? — perguntou num tom tranquilo.

Ela confirmou com a cabeça.

— Faz alguma idéia de onde estamos Stella? A bússola parece ter quebrado.

— Espanha — disse ela, apontando para a costa que surgia.

Ele fiocu atracado apenas um dia e depois voltou ao oceano.

Com o passar das semanas, a “convivência” com Stella foi se tornando agradável, e os dois ficaram mais próximos. Grande parte dessa aproximação deveu-se ao comportamento de Stella, que constantemente divertia William. Ela tinha aparência de uma mulher de 30 anos, mas sua mentalidade remetia a uma pré-adolescente – só que inocente.

Stella tinha o hábito de conversar com gaivotas, de dialogar com o mar. Sempre que William lavava a louça, ela pegava a espuma e conseguia fazer bolhinhas, com as quais brincava, levitando como uma pluma.

— Posso te fazer uma pergunta Stella? — perguntou William certa vez.

— Claro.

— Todos os anjos são como você? Sabe, imagina-se que vocês possuem asas...

Ela riu.

— Sim, são como eu. Mas não na forma física que você está vendo. Esta forma é apenas uma quando viemos a Terra.

— E como é a sua forma?

— Hum... Acho que você não entenderia, sei que não. Não que eu esteja lhe subestimando, mas é que isso está além da compreensão humana — disse Stella, primeiro apontando para sua cabeça, depois para o seu coração. —Mas se você quer saber, é algo como uma mistura de luz, cores, música e um pouquinho de chocolate.

William achou aquilo bizarro.

— E seu nome? Quem garante que é Stella? — brincou.

— Mas não é.

— Então qual é o seu nome verdadeiro?

— Eu até diria, mas na minha língua você não entenderia absolutamente nada, e em sua língua, o meu nome é extremamente longo. Ficaríamos meses, até que eu terminasse.

Ele a olhou abismado.

— Sério? Por que então Stella?

— Assim como meu corpo, que é igual a de alguém, meu nome também é.

— Que falta de originalidade. Precisava copiar de alguém? — William riu.

Quando a princesa Sofia voltou a ancorar, desta vez na Itália, Stella quis descer junto.

— Teremos então que comprar roupas para você. As pessoas vão estranhar esse seu vestuário.

Com o dinheiro que sempre conseguia com a venda de peixes que pescava, os dois foram às compras. Stella queria roupas extravagantes, mas William a convenceu a se vestir de maneira usual.

Apartir desse dia, o anjo passou a sempre acompanhar William em suas incursões em terra firme. E juntos, passaram a ficar cada vez mais longe do mar.

— Não acha que está na hora de voltar a viver com os pés na terra? — perguntou Stella. Foi um dos raros momentos em que ela ficou séria, e o seu olhar refletia a sabedoria adiquirida por milhares de anos.

— Acho que não... Não tenho certeza — era notável o espírito mais calmo e alegre do homem.

— Você deve voltar a ter uma vida — disse Stella. — Não peço que abandone seu barco, ou que caia na rotina, isso não; mas peço que tome fôlego e escolha um rumo. “Preso” nessa embarcação, você está estacionado na vida. Sua mulher e seu filho ficariam felizes em vê-lo feliz, pense nisso.

William de fato analisou a situação.

Após algumas semanas ao mar, eles atracaram em Tudeaux, uma pequena cidade turista do leste canadense. Lá em uma pequena loja de produtos de pesca, Stella fez um grande escândalo para que William comprasse um canivete.

— Eu só vim para comprar linha — disse William. — Eu já tenho uma boa faca afinal, e não preciso de uma besteirinha dessas.

— Mas vai comprar! — choramingou Stella.

Então ela começou a gritar e a derrubar as mercadorias das prateleiras. O dono da loja ficou histérico e William foi obrigado a pagar os estragos, e ainda a levar o bendito canivete.

Quando saiu da loja, William estava muito irritado com o comportamento do anjo e estava pronto para lhe dar uma terrível bronca. Quando se virou para dar seu sermão em Stella... Não havia ninguém.

William esquadrinhou com o seu olhar agudo toda a região, mas ela simplesmente desaparecera, evaporara.

Meio desnorteado, ele se dirigia ao seu barco, quando uma menina que aparentava ter uns 15 anos veio ao seu encontro. Ela chorava deseperada.

— Senhor, precisa me ajudar!

— O que houve?

— Meu irmão — ela soluçou —, eu e ele estávamos nadando ali no cais, e ele mergulhou e não voltou mais!

— Me mostre onde vocês estavam — disse ele prontamente.

A menina o guiou rapidamente ao local onde eles estavam brincando, e William pulou na água. Ali havia cerca de uns 4 metros de profundidade.

Com facilidade William vizualisou o menino. Estava inconsciente, preso a uma rede entre uma pilha de pedras e entulho.

Ele agarrou o menino, mas não conseguia soltá-lo daquele emaranhado de linhas fortemente entrelaçadas. William ficou afoito, não sabia o que fazer...

Foi então que ele lembrou do canivete que Stella o obrigou a comprar. Sem pensar muito, William retirou o utensílio do bolso e conseguiu cortar os fios. Com esforço, ele levou o menino para a superfície, onde agora havia um alvoroço de curiosos.

Em chão firme, ele conseguiu reanimar o menino.

— Você está bem? — perguntou William.

— Sim — respondeu com a voz um tanto rouca.

Houve aplausos, e muitos sussuravam que ele era um herói.

A irmã dele se ajoelhou ao lado do menino.

— Onde está o pai de vocês? — indagou William.

— Nossos pais são separados, meu pai não mora aqui. Mas minha mãe esta ali — disse apontando para a multidão, de onde surgia correndo uma mulher berrando.

— Marlos, filho, você está bem?

— Estou mamãe. Esse homem aí me salvou.

A mulher olhou fixamente para ele. William ficou impressionado. Ela era idêntica a Stella, com cabelos castanho-claros e grandes olhos azuis.

— Stella... — disse a mulher.

— O que? — William arregalou os olhos.

— Minha filha, a Stella. Ela se descuidou com o Marlos e acabou causando todo esse transtorno... devo agradecê-lo senhor.

— Ah, não foi nada não senhora. Me sinto bem em ter salvo uma vida.

— Não precisa me chamar de senhora, não sou tão velha assim — e sorriu diante do alívio. — Pode me chamar de Julia.

William estendeu a mão e a cumprimentou.

— Muito prazer, sou William Desmond.

— Senhor Desmond, será que como agradecimento, eu não poderia lhe oferecer um jantar? Eu sou dona de um restaurante ali na orla.

Ele hesitou.

— Sim — disse finalmente. — Se não for um incômodo...

— Não será.

Quando William voltou ao barco, também não encontrou o anjo, mas sobre a sua cama estava aberta uma bíblia chamuscada em alguns pontos. Marcada com carvão, estava uma passagem: Salmos 3 - 3,4,5.

Foi então que William Desmond entendeu tudo. A tempestade, o nome dela, sua aparência, o canivete. Ele riu, feliz. Entendeu o grande recado que Stella deixara.

Depois daquele jantar no restaurante de Julia, William voltou poucas vezes ao mar. Não se desfez da princesa Sofia, mas decidiu se fixar em Tudeaux.

Às vezes, quando saia para navegar junto de sua nova família, ficava olhando para os céus até próximo ao anoitecer. William nunca mais viu aquele anjo que mudou a sua vida.

Fim

Jean Carlos Bris
Enviado por Jean Carlos Bris em 23/11/2009
Reeditado em 13/12/2010
Código do texto: T1939699
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2009. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.