O marinheiro solitário - parte 1
Antes de mais nada, esta é uma pequena história sobre o mar, um homem solitário, um anjo, e um canivete suiço.
Há cerca de 20 anos, William Desmond passou a viajar pelo mundo à bordo de um pequeno barco que comprara. Viajava solitário, parando de tempos em tempos em terra firme para abastecer seu barco. Dessa forma conheceu dezenas de países, inúmeras culturas e diferentes idiomas.
William era um homem que já fora alegre, mas que se tornara sisudo e reservado. Passava pouquíssimo tempo em terra, e quando o fazia, difícilmente estabelecia uma conversa não sistemática com alguém.
Num dia de calmaria, o homem encontrava-se encostado à popa de seu barco – princesa Sofia - quando sentiu um vento quente incomum bater em seu rosto. Era uma corrente de ar relativamente forte, mas que curiosamente não fazia as velas do barco se mexerem.
William olhou para aquilo descrente, percebendo que nem mesmo sua roupa estava sendo afetada. Era como se somente sua pele sentisse o deslocamento de ar. Repentinamente o vento cessou.
Uma figura se ergueu atrás do homem, inclinando-se para tocá-lo. Ele não percebeu a presença do ser.
— As calmarias me incomodam — disse uma voz suave, entoada quase como uma canção.
Ele se virou e se deparou com uma jovem mulher vestida de branco, com uma tiara de jasmin presa ao seus cabelos castanho-claros. A moça o olhava com adimiração, com seus grandes olhos azuis brilhando perante uma alegria bastante sutil.
— Sabe, é como se o mar decidisse descansar — disse a mulher. — É como se os ventos decidissem por não avançar.
William continuava parado, olhando para a mulher com espanto. Finalmente falou:
— Só pode ser um sonho...
— Não, sonho não — disse ela. — E não pense que vim te buscar. De jeito nenhum; esse é o trabalho da Outra.
— Moça, quem é você? Como veio parar aqui?
— Sou um anjo. Me chamo Stella.
— Um anjo?
— Sim.
De repente William saiu apressadamente dali, descendo até a pequena cozinha, onde passou a revirar as gavetas.
— O que procura William? — perguntou Stella, surgindo na cozinha, sentada sobre a mesa metálica.
— Meus remédios.
— Você não toma remédios — afirmou o anjo.
— Ah, tomo sim.
William achou uma garrafa de Whisky e começou a beber.
— Por que está fazendo isso William?
— Preciso relaxar — disse o homem, tomando um gole. — Ando meio estressado e estou vendo coisas, isso com certeza vai me ajudar. Tem uma louca no meu barco dizendo que é um anjo.
Stella riu. Era um riso leve, calmo, sutil.
— Não seja bobo William Desmond. Dessa forma é que verá coisas. E afinal de contas, não sei porque está agindo dessa forma; não foi você quem pediu ajuda dos céus?
Ele não respondeu, mas lhe surgiram lembranças muito dolorosas.
A família Desmond acabara de se mudar para a cidade litorânea de Diekov, uma fria localidade da Rússia. William acomodou-se com sua esposa Kristine e seu filho Gabriel.
Era um Domingo e a família saiu para fazer compras em um pequeno mercado na orla. O sol que tentava se desvencilhar das nuvens cinzentas, refletia sua luz nos cabelos louros de Kristine e tornavam mais vivos os olhos azuis do pequeno Gabriel. O garotinho tinha dez anos de idade e sempre sonhava com o mar. Nesse dia apontou para o horizonte e disse:
— Quando teremos um barco?
— Não sei filho — disse William. — Um barco é algo bastante caro.
Kristine notou o entrestecimento nos olhos do filho e então falou:
— Acho que no final de ano. Não será um barco enorme, mas sim um pequeno.
— Quê bom! — exclamou o garotinho, abraçando sua mãe.
William olhou para Kristine com um tom inquisidor.
— Também é meu sonho ter um barco — disse ela. — Acho que um pequeno barco pode caber no nosso orçamento.
O marido continuou sério por mais alguns quarteirões, até que voltou a sorrir com as brincadeiras de Gabriel.
Foi então que aconteceu.
Eles chegavam ao mercadinho, quando uma dupla de bandidos saiu do lugar que tinham acabado de assaltar. Lá fora eles deram de cara com a polícia, e um tiroteio começou.
Os Desmond estavam na linha de tiro, e William agarrou sua esposa e seu filho para protegê-los. Agacharam atrás de uma caçamba de lixo deixada ali, e esperaram.
Não demorou para que o tiroteio cessasse e os doisa assaltantes tombassem mortos. William e Kristine estavam bem, mas Gabriel estava inconsciente. Ele fora atingido.
O menino foi socorrido mas não resistiu. Uma sombra encobriu William e Kristine Desmond.
O whisky fez um grande efeito, e no dia seguinte William acordou com uma forte dor de cabeça. Logo ao abrir os olhos, se deparou com o anjo, sentado sobre uma escrivaninha de seu quarto, balançando os pés enquanto encarava o homem.
— Você estava dormindo tão tranquilamente.
— Não acredito que ainda está aqui.
— E por que eu não estaria?
— Porque eu quero que suma daqui! — exclamou William.
— Sei que viu e viveu coisas terríveis, mas só terá sua alma límpida, quando superar seus traumas!
De fato, a vida de William Desmond não foi nada fácil.
Na casa dos Desmond, havia um silêncio terrívelmente incômodo. O último resquício de alegria – dependendo do ponto de vista -, foi um pequeno mural no corredor, onde Gabriel costumava pregar os desenhos que fazia. Durante vários dias, William permanecia por horas em frente ao mural, observando os últimos esboços de seu filho. Havia o desenho de uma ilha; o desenho de um avião; e o de um barco, onde haviam as linhas simplistas e tortas que representavam a família. Podia-se ler escrito no casco do barco desenhado: PRINCESA SOFIA.
Apesar da inevitável tristeza, William conseguiu se manter em pé. Já Kristine não teve tal resistência. Ela caiu e não mais levantou. Entrou em depressão.
A cada dia que passava, ela estava mais debilitada, passando a maior parte do tempo sedada por fortes medicamentos. Até que chegou um dia em que ela não suportou; sua estrutura cedeu, e ela morreu.
William chegou em casa e a encontrou. Kristine cometera suicídio, cortando os pulsos e tendo uma morte lenta e dolorosa. O chão dele desabou.
O homem agora sozinho, vendeu tudo o que tinha e comprou um pequeno barco, onde passou a viver, sempre navegando longe de Diekov. William era religioso até então, e por isso todo dia rezava, pedindo a Deus que ajudasse a sanar seu sofrimento. Porém um dia ele cansou e desistiu.
— Como saberei que você é um anjo, e não uma doida qualquer? — perguntou William.
— E acha que um humano conseguiria chegar ao seu barco, aqui, em meio ao oceano atlântico?
William não respondeu, percebendo a tolice de sua pergunta. Ficou calado por um tempo, até que indagou:
— Por que veio?
— Eu vim porque você precisa seriamente de ajuda. Deve voltar a viver, deve superar o que passou. Deus assim quer.
— Deus? — indagou ele. Seu maxilar tremia de tanto ser apertado. — Será então que ele pode dizer porquê tirou minha família de mim?
Stella ficou com o olhar vago.
— Porque teve que ser assim — disse ela de repente. — O tempo deles veio e se foi, assim como será com você.
O homem riu, mas não se tratava de alegria. Era uma risada irônica.
— O tempo deles acabou, é o que você me diz... Só isso? É só isso que você tem a me dizer!? — gritou William.
— É a verdade — disse ela calmamente, não se afetando pela a alteração que se manifestava em William.
— Mas por que ele não impediu isso?
— Livre arbítrio, William. É isso que diferencia você de mim. Os humanos têm direito a fazer escolhas, e Kristine escolheu abandonar este mundo. Deus não poderia interferir.
William bufou, indignado.
— Mas de quê adianta um deus assim? — gritou. — Um deus que prefere deixar um filho seu se matar, a impedi-lo. Um deus que vê uma família se desmanchar e nada faz?
O anjo aproximou-se e pousou sua mão sobre o ombro de William, como uma forma de consolo, e disse:
— Tente ficar calmo...
O homem empurrou Stella para longe dele.
— Quero que vá embora daqui!
— Não vou. Deus quer que eu fique.
Irritado, William abriu a gaveta do seu criado-mudo e retirou uma bíblia – que por sinal recebera de sua falecida mulher.
— Sabe o que eu faço com as palavras do seu deus?
Ele se dirigiu ao forno a lenha e arremessou o livro ao fogo, que imediatamente começou a consumir as frágeis páginas. Então ele saiu da cabine e nem viu quando Stella salvou a bíblia do fogo. Ela não devolveu o livro, decidindo ficar provisóriamente com ele.