ESTÓRIA DE PESCADOR

Amanhecia em Eldorado.

O sol, como sempre, se mostrando vagarosamente por detrás do Morro do Elpídio, aos poucos dava brilho às águas ligeiras do Ribeira.

Dico, o mais velho dos filhos de uma família de onze irmãos, todos homens, um time de futebol completo, preparava sua tralha de pesca para poder, em fim, se largar pelos barrancos do apressado e caudaloso rio. Nada de varas de vibra de vidro, carretilhas ou molinetes de última geração, muito menos iscas artificiais, que enganam não só os peixes, esfomeados, mas também os martins-pescadores, os marrecos e as lontras. Dico terminava de enrolar a linha de náilon, sobre uma garrafa vazia de vinagre Castelo, que já vinha com seu corpo trabalhado em sulcos e que parecia feita exatamente para preparar a linhada. Na ponta, depois da bola de chumbo que corria livre por uns trinta centímetros de linha, não muito pesada, porque a pescaria seria numa revessa, vinha amarrado caprichosamente, um afiado anzol que reluzia de tão limpo, esperando ansioso, no entanto, as minhocas suculentas que atrairiam os mandis e os bagres.

A revessa do ribeirão Xiririca, em frente à prainha da Freguesia Velha, local escolhido para a pescaria, ficava a uns três quilômetros rio acima. Assim, arrumou tudo em um saco de aniagem e amarrou com um pedaço de corda de cizal na garupa da sua Monark barra circular, que já havia sido vermelha, quando nova, sem pára-lamas e com freio a pedal, companheira fiel de muitas outras pescarias a quase duas décadas. Atravessou a cidade, a praça da Matriz, fez o sinal da cruz ao avistar a Igreja de Nossa Senhora da Guia, em respeito e para dar sorte, cumprimentou alguns amigos só com um balançar de cabeça e seguiu ladeira abaixo entrando na estrada da caverna. O vento fresco da descida animou ainda mais o rapaz que já visualizava na cabeça, a grande pescaria. Agora, tendo que pedalar bastante pensava em como fazia tempo que não visitava a gruta da Tapagem, a tão famosa Caverna do Diabo... Talvez no próximo fim de semana, desse uma esticada até lá para matar as saudades e, na volta, ainda dava pra tomar um bom banho na Queda de Meu Deus, linda cachoeira que justificava seu nome a cada turista que a contemplava e soltava ao vento, produzido por ela, a exclamativa de surpresa e satisfação, invocando o nome do Senhor. Já vendo, à esquerda, a casa que era dos Paiva, lembrou-se que tinha de entrar à direita na estradinha de terra que cortava o bananal da fazenda. Eram somente mais alguns metros.

A prainha estava linda! Suas areias brancas quase o fizeram mudar de idéia e ficar por ali mesmo. Mas, a canoa de garacuí que seu Anbrósio sempre emprestava, já estava à sua espera, pronta para fazer a travessia do rio e aportar na outra margem onde, os bagres e mandis estavam aguardando.

No céu, azul sem manchas, só alguns urubus bailavam com suas imensas asas abertas a aproveitar-se da corrente de ar provocada pela correnteza do rio e a proximidade das montanhas da margem, sem fazer esforço. Apenas, de vez em quando, batiam as pás de plumas negras para mudar de direção fazendo manobras como aviões da esquadrilha da fumaça.

Do outro lado, Dico desceu no barranco, pois não gostava de jogar linhada da canoa. Era perigoso. Cair na revessa podia significar a morte. Os redemoinhos e a água escura, devido a grande profundidade, eram de dar medo apesar de comporem uma fascinante paisagem.

Escolheu uma minhoca das grandes. Cobriu todo o anzol e deu para fazer um bolo na ponta – do jeito que os bichos gostam – pensou.

Lançou, com a habilidade que lhe era peculiar, depois de várias voltas em torno da cabeça, a linha, a chumbada e o anzol, ouvindo logo em seguida o “tchum!” curto e grave, reafirmando a grande profundidade e avisando os peixes que o almoço “estava na mesa”.

Que o que.

Mais uma vez e nada!

Dez arremessos depois, já pensava em desistir. O mar, digo, o rio não estava para peixe. Nunca voltara sapateiro para casa.

O calor aumentava, o sol já a pino, a sede, a fome, a frustração, a derrota... Um último arremesso. Como a pesca milagrosa do Messias. Iscou mais uma minhoca, não tão grande, pois quase já havia gasto todo estoque. Rodopiou a linha e, pronto: A sorte estava lançada (e o anzol também).

Nada de “tchum!”. O cansaço e o nervosismo prejudicaram a eficiência do lançamento. A linha subiu ao invés de descer. Mas, no entanto, se subiu tinha que descer. Um puxão tomou-o de surpresa. Segurou a garrafa de vinagre com firmeza, a linha ainda esticada para cima, e puxou também, em contragolpe:

_ O que é isso? - disse em voz alta, como se alguém lá em cima o escutasse.

O anzol prendera-se ao pé de um pesado urubu que, cansado da briga, como um caça abatido pelo inimigo, espatifou-se de encontro com a água do Ribeira. Fazer o que. Tussa começou a recolher a linhada. O bicho se debatia, afundava, voltava à tona, afundava de novo e, até que se terminasse de enrolar a linha toda, chegou às mãos do pescador (?) já mortinho da silva.

Eureca!!! Estava ali a saída:

_ Posso voltar sem peixe, mas não sem comida...

E, naquele dia, todos na casa de Dico comeram um delicioso ensopado de Jacu que, com certeza, deve ter rendido uma bela estória de pescador...

Lélis Ribeiro
Enviado por Lélis Ribeiro em 23/11/2009
Reeditado em 26/11/2009
Código do texto: T1939447
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