Sol entre nuvens
Se alguma das pessoas que passavam apressadas por ali tivesse parado por um momento para observá-lo, talvez percebesse que ele estava sangrando. Veria essa pessoa que o sangue escorria dele em grandes filetes, derramando-se pela calçada, formando uma poça que ficava mais e mais volumosa à medida que o tempo ia passando. Poderia ter visto, talvez, que alguns mais distraídos até pisavam na poça de sangue vez por outra, alheios a tudo que não dissesse respeito aos seus próprios problemas, a suas próprias dores e feridas, ao seu próprio sangrar. Seria possível, a esse observador ocasional, notar que a ferida da qual provinha esse sangue estava escondida embaixo das roupas que aquele homem desconhecido vestia, coberta por uma camada de tecidos velhos, sujeira e distanciamento de tudo que diz respeito à vida e ao viver. Perceberia o observador que aquela chaga era do tipo que nenhuma enfermeira poderia tratar, que nenhuma sutura fecharia, cuja dor latejante não poderia ser aliviada com nenhum remédio, pomada ou ungüento. E que, muito mais do que algum exame ou interrogatório, o diagnóstico da causa de tanta dor só seria preciso caso o interessado superasse as barreiras, visíveis e invisíveis, e olhasse diretamente nos olhos daquele homem. Caso tivesse existido, dentre os tantos caminhantes daquela manhã sem nome e sem tempo, um homem ou mulher capaz de deter sua marcha e olhar nos olhos do ser humano sentado no meio fio, não seria muito difícil ver a alma ferida, o espírito aberto num corte profundo, a consciência desbotada pela dor que surge como um tom de cinza-escuro a cobrir todo o sol daquela manhã. Uma dor tão grande, tão sincera e tão desencantada que, se fosse visível, cobriria de cinza o céu de todos que ali andavam, faria daquela manhã de sol e de vida uma manhã de nuvens pesadas, de céu carrancudo, uma manhã de guarda-chuvas e de mau humor. Uma dor que empestearia o ar, atrairia os ratos, baratas e moscas varejeiras, que deixaria os jovens nervosos e encheria de frio os mais velhos. Porque a dor daquele homem é a dor que move os poetas e loucos, a tristeza sombria que anima os acordes de guitarra, a agonia do que plantam as sementes do sonho irresponsável e colhem um fruto amargo de negativa e azedo de tragédia. Dor que queima por baixo da pele, que atrai tudo para si como buraco negro, que faz da lágrima e do soluço a ante-sala da loucura além de esperança. Uma dor que sangra, silenciosa e implacável, pelo tecido dos anos que se vão sem que ninguém se preocupe em contá-los. Ao que fosse suficiente corajoso para tentar vê-la, eis como a dor daquele homem surgiria, bela como a iminência da morte, terrível e bruta como um diamante que ninguém quer.
Mas nenhuma das pessoas que passou por aquela rua naquela manhã de sol deteve-se para observar o homem sentado ao meio-fio. Todas elas, sem exceção, seguiram seu caminho pelas ruas e calçadas, unidas pela indiferença mútua, compartilhando a bela manhã de sol que nenhuma delas realmente via. Apenas para o homem o céu era nublado, apenas para ele a chuva pesada era iminente, somente ele sentia que naquela rua e naquela vida nunca mais haveria o calor do sol. E ali ficou sentado, aquele mendigo ferido de amor, também ele indiferente aos raios de luz que banhavam a todos, mas não iluminavam ninguém.